sábado, 22 de março de 2014

Romeu de Melo: "o mais solidário dos homens com o que ainda vale a pena no mundo"

"[...] Desta perspectiva em que a cultura e liberdade se fundem como condição de espírito, derivaram as variantes da sua reflexão filosófica posta em vários ensaios e em ficção mesmo científica. Resoluto acusador do vírus mediocrático a que são vulneráveis as democracias, incansável foi o seu pugnar pelo desbravamento da cultura sequestrada pelos poderes, pois entendia o sujeito cultural como lídimo intérprete do sentido finalista da evolução humana: o espírito irradiando na culminação da liberdade. E, sublinhe-se, liberdade e nobreza de conduta eram o timbre desse maravilhoso amigo que, na solidão do seu horror a fachadas que apregoam falsos valores, era o mais solidário dos homens com o que ainda vale a pena no mundo", escreveu Natália Correia no obituário de Romeu de Melo em Dezembro de 1991.

Romeu de Melo (1933-1991), licenciado em economia, legou-nos uma extensa obra filosófica, de ensaio e de ficção, abrangendo vários temas de considerável importância social, política e científica. Viveu muitos anos em Mértola, onde o conheci no início da década de 1950 ainda na minha infância. A despeito de ter mais doze anos do que eu, estabeleceu-se entre nós, desde então, uma amizade para a vida. No meu 3º ou 4º ano do liceu, deu-me algumas explicações de álgebra e geometria seguindo os livros do matemático J. Jorge G. Calado (pai de Jorge Calado, futuro químico, professor do IST, e colunista de arte e de ópera). Romeu falava-me a propósito, com entusiasmo contagiante, sobre a hipótese, o axioma e a tese, rabiscando algumas notas nas margens dos meus livros. E, num desses dias, sentado à secretária da sua recheada biblioteca, disse-me: "Amicus, vou ler-te um conto!" e, pegando numas folhas datilografadas, começou com voz grave, cavernosa e misteriosa:

"O rapazinho estudioso sentiu um estremecimento interior, e ficou a pensar se seria aquele o sinal.
Ele temia um sinal, mas não sabia qual a sua forma nem a sua cor... As suas convicções tinham de ruir, e um monstrozinho interior - a decepção e o descrédito dos outros - havia de surgir-lhe na sua frente, para lhe dizer:
- Acorda! Todos os ideais da tua juventude se consumiram...
- Acorda! Acorda! Já és um homem.
E depois, pensava o rapazinho estudioso, o monstro havia de aparecer na sua frente, bamboleando-se como um arlequim pantomineiro, com os guizos a chocalharem e o seu chapéu de muitos bicos a dançarem-lhe na cabeça. E diria ainda:
- Estás acordado? Então, rapazinho estudioso, vai dizer pelo mundo que os que costumam sonhar - como tu fazias - ainda terão de haver-se comigo. Diz-lhes que lhes aparecerei na frente, para contar- lhes uma história feia, e convidá-los a abrirem os olhos da maturidade e da experiência.
Passados uns minutos de angústia, o menino estudioso revoltou-se contra aquela sua imagem... Quis expulsar de vez o monstrozinho que ele nesmo criara dentro de si, e gritou - lá para dentro do seu íntimo:
- Vai-te monstro! E vai tu dizer, aos jovens de todo o mundo, que eu serei eternamente jovem. Diz-lhes que eu nunca «abrirei os olhos» para desconfiar dos homens, e viver num mundo de esclarecida mesquinhez.
Anda ! - gritou com mais força, para dentro de si . - Vai contar a todo o mundo que jamais serei adulto...
"

Eu, boquiaberto, bebia-lhe as palavras. O que era isto?... O rascunho da sua estreia na ficção, em 1959: "AK: a Tese e o Axioma".

Um de outros temas a que se dedicou foi a filosofia política. Por exemplo, na antologia "Os Intelectuais e a Política", após explicar o seu conceito de intelectual (onde concluí que não é intelectual quem quer, mas quem é, e que a intenção e ação permanente do verdadeiro intelectual é a busca da verdade), interroga-se: não querem os intelectuais governar? ou não podem governar? A resposta é longa, porventura polémica, dizendo, entre muitos argumentos, o seguinte:

"[...] Parece-nos, pela sequência dos raciocínios expostos, que os intelectuais governam sempre, ainda que de diversos modos. Mas que o grau de intelectualidade está mais ou menos relacionado com as formas possíveis de governação, ou seja, quanto mais intelectual é um homem, mais adequado lhe é um determinado tipo de governação e orientação. Se é um grande intelectual, tenderá a fugir da «praça pública», com disse Nietzsche, para procurar a crista da montanha remota de onde desferirá os dardos que, transmutando-se através de outras e mais outras formas de conhecimento e de acção, irão atingindo o mundo do real e das relações humanas. Os grandes intelectuais predicaram religiões e morais; os intelectuais menos dotados, normalmente, reservaram para si os papéis de juristas ou de doutrinadores políticos. Os mais-intelectuais lançaram as bases de concepções do mundo, ou os fundamentos das ciências; os menos dotados fizeram experiências práticas e inventaram engenhos (ressalvem-se aqui os casos de um Arquimedes ou de um Galileu, entre outros). Não estamos a postular, é claro, mas simplesmente a buscar linhas mestras que nos ajudem a clarificar o problema [...]".

Assim era Romeu de Melo, polémico, de humor subtil por vezes cáustico, um magistral contador de histórias, um filósofo, ensaísta e ficcionista brilhante e, acima de tudo, "o mais solidário dos homens com o que ainda vale a pena no mundo" como disse Natália Correia. Teve uma influência indelével no meu gosto pela filosofia, história e ficção. Que estavam sempre presentes, também, nos nossos saudosos passeios e banhos no rio Guadiana, durante as tardes escaldantes do verão em Mértola, na companhia de outros amigos e amigas, em particular da sua irmã mais nova, Isabel Melo (futura médica), minha colega até ao 5º ano do liceu no Externato D. Sancho II. As Azenhas de Mértola era um dos sítios preferidos do rio, onde Romeu adorava meditar e escrever.
Encontrámo-nos pela última vez em Novembro de 1991. Num almoço memorável com as minhas colegas Raquel Gonçalves-Maia e Lídia Albuquerque. Ofereceu-me os três volumes das suas "Reflexões", com um brilhozinho nos olhos e palavras afetuosas. No mês seguinte, partiu a caminho do espaço etéreo. Até sempre, Amicus!

Rio Guadiana querido... imagens do meu olhar...
    Fernando Fernandes, Romeu de Melo e António Fernandes; Azenhas, Agosto 1953

Ricardo Lopes, Luísa Sales, Dr. Sales (junto do borrego), Romeu de Melo, Manuela Rodrigues, Victória Melo e Isabel Melo; Azenhas, Setembro 1958

 Fernando Fernandes e Romeu de Melo; abaixo da Casa Amarela, Agosto 1959
                                                
~1960

em "Reflexões", 1991

Diário de Notícias, 19/12/1991

Referências
[1] Romeu de Melo, "AK: a Tese e o Axioma", Porto, 1959.
[2] Romeu de Melo, "Ensaio sobre a Cultura", Editorial Presença, 1963.
[3] Romeu de Melo, "Os Intelectuais e a Política", Editorial Presença, 1964.
[4] Romeu de Melo, "Reflexões-1. Política, Filosofia, Sociologia, Antropologia", Publicações D. Quixote, 1986.
[5] Romeu de Melo, "Reflexões-2. A Natureza da Guerra, A Fenomenologia da Guerra e Outros Ensaios", Publicações D. Quixote, 1986.
[6] Romeu de Melo, "Reflexões-3. Filosofia Política, Sociologia, Cultura Portuguesa, Temas Literários", Editorial Notícias, 1990.
[7] Em Memória de Romeu de Melo, 2013.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Raquel Gonçalves-Maia, "Dos Raios X à Estrutura Biomolecular"

"Nem sempre a ciência foi um projecto virtuoso, convém consciencializá-lo em nome da paz social", escreveu Raquel Gonçalves-Maia em "O Legado de Prometeu". Todavia, no seu novo livro "Dos Raios X à Estrutura Biomolecular" descreve-nos um projecto deveras virtuoso. Sem endeusar os cientistas, nem laivos de cienticismo, mostra-nos quão importantes são as contribuições dos protagonistas deste ramo transversal da ciência para a segurança e prevenção na saúde social, e para desvendar mecanismos da Natureza.

O livro está estruturado em três capítulos: 1- Os Primeiros Voos, 2- Estrutura e Função, 3- A Terceira Geração. Após introduções explicativas seguem-se biografias resumidas dos/das cientistas principais. No final, uma bibliografia geral e específica e um índice onomástico de cientistas. Um livro primorosamente escrito como é o timbre da autora. Um estilo de historiografia que alia a pedagogia à didática. Um passeio delicioso na história da ciência!

Sobre Raquel Gonçalves-Maia, julgo que nada melhor do que a síntese da nota seguinte, em publicação num dos próximos números de "Química", Boletim da Sociedade Portuguesa de Química. Como bem diz Miguel Castanho, um livro indispensável para todos.


Referências
[1] Raquel Gonçalves-Maia, "Dos Raios X à Estrutura Biomolecular", Editora Livraria da Física, São Paulo, Brasil, 2013.
[2] Raquel Gonçalves-Maia, "O Legado de Prometeu. Uma Viagem na História das Ciências", Escolar Editora, Lisboa, 2006.
[3] Raquel Gonçalves-Maia, "O Legado de Nobel. Perfis na Ciência do Século XX (1900-1959)", Escolar Editora, Lisboa, 2008.

terça-feira, 11 de março de 2014

A Poesia e a Matemática

A poesia é simplesmente o meio mais belo, impressionante e largamente eficaz de dizer as coisas, escreveu Mathew Arnold, poeta inglês.

Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, clamou:

O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó - óóóóóóóóó - óóóóóóóóóóóóóóóóóóó
(O vento lá fora.)

Walt Whitman, poeta americano (a quem Álvaro de Campos dedicou "Saudação a Walt Whitman") diz no seu longo poema "Song of Myself":

[...]
Do I contradict myself?
Very well then I contradict myself,
(I am large, I contain multitudes.)
[...]

António Gedeão, poeta (pseudónimo de Rómulo de Carvalho,  físico e químico), declamou em "Pedra Filosofal":
[...]
Eles não sabem, nem sonham,
Que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mão de uma criança.

Eduardo Aleixo, poeta, conjuga o número e a palavra em "Rosto Puro e Sábio":

A máscara do número
E o vestido da palavra
encobrem o rosto puro
e sábio do silêncio...

Michael Guillen, físico, matemático e astrónomo americano, escreveu no livro de 1995 "Cinco Equações que Mudaram o Mundo":

Na linguagem da matemática, as equações são como a poesia: estabelecem as verdades com uma precisão única, condensam vastas quantidades de informação em poucas palavras [...] e, tal como a poesia convencional nos ajuda a encarar as nossas profundezas interiores, a poesia matemática ajuda-nos a olhar para além de nós - se não até ao Céu, pelo menos até ao limite do universo visível. Ao tentar distinguir a prosa da poesia, Robert Frost [poeta americano] sugeriu certa vez que um poema, por definição, é uma forma concisa de expressão que nunca pode ser rigorosamente traduzida. O mesmo se pode afirmar da matemática: é impossível compreender o verdadeiro significado de uma equação, ou apreciar a sua beleza, se não for lida na linguagem deliciosamente peculiar em que foi escrita. Foi precisamente por isso que escrevi o presente livro.

Este livro de divulgação guia o iniciado num belo passeio através do significado e consequências da poesia de cinco equações. Desde Isaac Newton (1642-1727) até Albert Einstein (1879-1955) passando por Daniel Bernoulli (1700-1782), Michael Faraday (1791-1867) e Rudolf Clausius (1822-1888).

Como são os astronautas orientados nas suas viagens através do espaço? Como circula o sangue nas nossas veias, qual o fundamento dos aparelhos de medição da tensão arterial e porque voam os aviões? Donde vem a energia eléctrica que nos alumia e nos oferece outras inúmeras aplicações de que usufruímos diariamente? Como pode converter-se calor em trabalho útil, qual o rendimento das máquinas a vapor, o que regula a emergência da vida e porque se prevê a morte térmica do Universo? Porque razão não são o espaço, o tempo e a massa propriedades absolutas? Como pode converter-se massa em energia e vice-versa? Porque razão se encurva um raio de luz quando passa perto de um astro? Quais os factores a considerar para o correcto funcionamento do GPS e de imagens televisivas? etc., etc.

Ian Stewart, matemático inglês, em 2013 publicou "17 Equações que Mudaram o Mundo". Um livro de divulgação incluindo as equações do livro de Guillen, embora numa forma mais profunda, e respondendo também às questões anteriores e a muitas outras. Stewart diz no prefácio:

Muitas pessoas preferem palavras a símbolos; a linguagem dá-nos também poder sobre o que nos rodeia. Mas a ciência e tecnologia entendem que as palavras são frequentemente imprecisas e limitadas para indicar um caminho efectivo em busca de aspectos mais profundos da realidade. Elas são por demais coloridas por preconceitos humanos. As palavras, por si só, não nos podem dar visões essenciais. As equações podem. Elas têm sido um dos motores da civilização humana por milhares de anos. Através da história, as equações têm puxado os fios da sociedade. Escondidas atrás das cenas, certamente - mas a influência estava lá, reconhecida ou não. Esta é a história da ascenção da humanidade, contada através de 17 equações.

O prefácio do livro cita também Robert Recorde, médico e matemático britânico que em 1557 implementou um dos símbolos mais característicos das equações:

Para evitar a repetição maçadora das palavras: "é igual a", estabeleço, como faço no meu trabalho, um par de paralelas, ou linhas gémeas de igual comprimento: "=", porque nenhuma destas duas coisas podem ser mais iguais.

Bem hajam a Poesia e a Matemática. Oferecem-nos o belo e o útil, iluminam-nos a vida e o futuro. Aguardemos por mais casamentos entre o Passado, a Prosa, a Poesia, a Ciência...

Referências
[1] Álvaro de Campos, em Arquivo Pessoa.
[2] Walt Whitman, "Song of Myself".
[3] António Gedeão, "Pedra Filosofal".
[4] Eduardo Aleixo, "À Beira de Água".
[5] Michael Guillen, "Cinco Equações que Mudaram o Mundo", Gradiva, 3ª edição, 2004.
[6] Ian Stewart, "17 Equations that Changed the World", Profile Books, UK, 2013.
[7] David Bodanis, "E = mc2, A Biografia da Equação mais Famosa do Mundo", Gradiva, 2001.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Sobre Albert Einstein

Um amigo meu postou, no Face Book, uma fotografia histórica de Charles Chaplin e Albert Einstein quando este visitou Hollywood em 1931 na ocasião da estreia do filme "Luzes da Cidade":
Houve vários comentários às duas personalidades. No que se segue, transcrevo uma troca de comentários sobre Einstein, entre mim (FF) e outra pessoa (XX). Depois, farei breves considerações que me parecem oportunas.
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XX Eu gostava um bocadinho do Chaplin (nunca gostei do Einstein!) ...

FF Apreciei que tivesse documentado com detalhe uma das faces de Chaplin, que eu conhecia através do livro de Irving Wallace et al. Permita-me uma pergunta: porquê nunca gostou de Einstein?

XX Nao o sinto "grande" Fernando Mss Fernandes, matematicamente falando. O pensamento dele e do mundo e' linear; portanto, a teoria da relatividade, embora valida em alguns casos, nao se aplica a todo o Universo. E claro, na historia do "desenvolvimento linear do conhecimento", ele e' um degrau sim mas, cheio de erros. E pior que tudo, ele "fixou-se" neles, erros, o que prova que o cerebro dele nao era assim tao capaz. O mundo precisa de mitos e, os idiotas servem bem essa necessidade, sem eles proprios, idiotas, terem culpa alguma. Pobrexito! Daqui a pouco estou eu a passar-lhe um atestado de impunidade. Que nao pode ser, pois ele nao foi impune.
 Alem disso era um medroso!

FF Lamento que não tenha documentado as suas afirmações sobre Einstein com o detalhe que aplicou no caso de Chaplin. Tal como estão, em minha opinião, são cientificamente insólitas, prestam um mau serviço a leigos que se interessem pelas contribuições de Einstein e, deontologicamente, deploráveis. Einstein não errou? Claro que sim, como qualquer cientista, mas admitiu os erros e, assim, contribuiu também para o progresso da ciência. Cita a linearidade matemática (um "palavrão", incompreensível para qualquer leigo!), mas, aparentemente, esquece a história da ciência.
 Onde estão os imensos erros da teoria da relatividade (restrita e generalizada)? Demonstre, por favor.
 Onde estão os erros da interpretação quântica do efeito fotoeléctrico (que lhe valeu o prémio Nobel)? Demonstre, por favor.
 Onde estão os erros da teoria dos calores específicos de sólidos? Demonstre, por favor.
 Foi a sua filosofia "pobrexita"? Demonstre, por favor.
 Foram as suas ações e declarações políticas medrosas? Demonstre, por favor.
 Finalmente, não explica por que razão não o considera impune. E, mais, adjectiva de idiotas os que satisfazem as suas necessidades de mitos com as idiotices de Einstein!

XX Quando me prestei a responder a uma pergunta sua Fernando Mss Fernandes, nao foi de todo para entrar em confronto consigo. Gosta do Eisntein? Optimo! Eu nao gosto! E nao tenho que lhe dar a si a ou a outra pessoa qualquer, as razaos dos meus gostos ou des-gostos. Quanto ao detalhe e' obvio que, pela natureza das duas profissoes - actor e cientista - e' muito mais "rapido" pronunciarmo-nos sobre o primeiro. Sobre o segundo, ha' anos de leituras e analises que nao podem ser espremidos num comentario de fb. E muito menos para satisfazer "naturezas retoricas". Para mim, o homem nao prestava e ponto final. Yo, Ho, Ho...

XX Fernando Mss Fernandes, aqui tem alguma informacao tirada da net. The man with the big ideas wasn't so good with the details. In Einstein's Mistakes: The Human Failings of Genius (W.W. Norton, $24.95, excerpted below), Hans Ohanian writes that Albert often let his intuition overrule flawed proofs and shaky math. Maybe you'll feel a little better about your own flubs. 
(See this earlier DISCOVER story for more detail on Einstein's biggest flubs: thinking black holes were impossible, believing the universe was static, and saying that "God does not play dice." Also see DISCOVER's recent special issue on Einstein.) 

Chronology of Einstein’s Mistakes

1905 Mistake in clock synchronization procedure on which Einstein based special relativity

1905 Failure to consider Michelson-Morley experiment

1905 Mistake in transverse mass of high-speed particles

1905 Multiple mistakes in the mathematics and physics used in calculation of viscosity of liquids, from which Einstein deduced size of molecules

1905 Mistakes in the relationship between thermal radiation and quanta of light

1905 Mistake in the first proof of E = mc2

1906 Mistakes in the second, third, and fourth proofs of E = mc2

1907 Mistake in the synchronization procedure for accelerated clocks

1907 Mistakes in the Principle of Equivalence of gravitation and acceleration

1911 Mistake in the first calculation of the bending of light

1913 Mistake in the first attempt at a theory of general relativity

1914 Mistake in the fifth proof of E = mc2

1915 Mistake in the Einstein-de Haas experiment

1915 Mistakes in several attempts at theories of general relativity

1916 Mistake in the interpretation of Mach’s principle

1917 Mistake in the introduction of the cosmological constant (the “biggest blunder”)

1919 Mistakes in two attempts to modify general relativity

1925 Mistakes and more mistakes in the attempts to formulate a unified theory

1927 Mistakes in discussions with Bohr on quantum uncertainties

1933 Mistakes in interpretation of quantum mechanics (Does God play dice?)

1934 Mistake in the sixth proof of E = mc2

1939 Mistake in the interpretation of the Schwarzschild singularity and gravitational collapse (the “black hole”)

1946 Mistake in the seventh proof of E = mc2

FF Muito obrigado pela "sua" cronologia "Einstein's mistakes" através da net... para minha ilustração! São, por certo, as resposta às questões que levantei!... Agradeço, também, saber que não está disposta a satisfazer "naturezas retóricas". Pois bem, fique-se com o seu dogmático, não-retórico e "demonstrativo" de que aprecia o debate: "Para mim, o homem nao prestava e ponto final. Yo, Ho, Ho...".

XX Okay, apologies accepted!  Bye bye now.

FF Apologies accepted! Imagine-se...
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O que penso sobre os pontos focados acima está claro no "debate". Lamento que XX nada tenha justificado com argumentos científicos. Os "erros" (?) que listou são há muito conhecidos, o próprio Einstein reconheceu-os. Sobre as discussões com Bohr acerca da interpretação da mecânica quântica, ainda há muitos aspectos em debate, não totalmente esclarecidos...
Mais um ponto: XX menciona a "linearidade matemática". É curioso, pois que, certamente por lapso, não se lembrou de que a mecânica quântica, por exemplo, na sua forma ortodoxa, ainda utilizada actualmente com impressionante sucesso, é matematicamente uma teoria absolutamente linear! Leia-se, por exemplo, Stephen Weinberg (físico americano, prémio Nobel em 1979, com Abdus Salam e Sheldon Glashow, pela unificação das forças fraca e electromagnética):

Quantum mechanics has had phenomenal successes in explaining the properties of particles and atoms and molecules, so we know that it is a very good approximation to the truth. The question then is whether there is some other logically possible theory whose predictions are very close but not quite the same as those of quantum mechanics [...]. It is striking that it has so far not been possible to find a logically consistent theory that is close to quantum mechanics, other than quantum mechanics itself [...]. In inventing an alternative to quantum mechanics I fastened on the one general feature of quantum mechanics that has always seemed somewhat more arbitrary than others, its linearity [...]. This theoretical failure to find a plausible alternative to quantum mechanics, even more than the precise experimental verification of linearity, suggests to me that quantum mechanics is the way it is because any small change in quantum mechanics would lead to logical absurdities. If this is true, quantum mechanics may be a permanent part of physics. Indeed, quantum mechanics may survive not merely as an approximation to a deeper truth, in the way that Newton’s theory of gravitation survives as an approximation to Einstein’s general theory of relativity, but as a precisely valid feature of the final theory”.
XX também não esclarece porque razão considera que Einstein "não foi impune" e que "era um medroso". 
Será pelas afirmações, não raras, de que ele foi o "pai da bomba atómica"? Não foi, esteve muito, muito longe disso
Será que não exerceu ações ou não fez declarações políticas sobre o nazismo, por exemplo? Exerceu e declarou, em momentos cruciais da 2ª guerra mundial e, depois, até falecer em 1955.
Será que foi, medrosamente, subserviente à política americana? Não foi, como o relatório do FBI, elaborado por Edgar Hoover, comprova claramente.

Teoria da Relatividade de Einstein em Ação
(publicado pela NASA, 6/3/2014)
se a imagem não for visível clicar no link abaixo

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Émilie du Châtelet e Voltaire. Ciência, Amor e Arte

                                      O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
                                      O que há é pouca gente para dar por isso.
                                       óóóó - óóóóóóóóó - óóóóóóóóóóóóóóó
                                      (O vento lá fora.)
                                                                     Álvaro de Campos, 1928

Considere-se um corpo material de massa m, deslocando-se com velocidade v. Diz-se que o corpo possui energia cinética. Como deve quantificar-se essa energia? Através do produto da massa do corpo pela sua velocidade (mv) conforme Newton admitiu como hipótese, ou do produto da massa pelo quadrado da velocidade (mv2) conforme Leibniz conjecturou?
Esta foi uma das grandes questões de Émilie du Châtelet (1706-1749) na primeira metade do século XVIII. Filha de aristocratas, aos 16 anos levaram-na para Versalhes, mas nunca se interessou pela vida dos salões da nobre sociedade francesa, nem frequentou bailes de debutantes. Em vez disso, lia a geometria analítica de Descartes e os trabalhos de Newton e de Leibniz. Dedicou a sua vida à ciência, ao amor e à arte. Cedo descobriu um marido de conveniência, du Châtelet, militar rico que passava a maior parte do tempo em campanhas distantes e que, como costume da época, aceitava os encontros amorosos de Émilie durante a sua ausência. Neles, ela encontrou o amor da sua vida: Voltaire, pseudónimo de François Arouet (1694-1778), escritor e filósofo iluminista francês.
Voltaire viveu alguns anos em Inglaterra onde se familiarizou com a jovem mecânica de Isaac Newton (1642-1727) e a filosofia política de John Locke (1632-1704) que a ela foi beber inspiração.
Regressado a França, que melhor "alma-gémea" poderia ter encontrado, durante uma ópera, senão a de Émilie? Tinham interesses comuns: reforma política, literatura e arte e, sobretudo, o avanço da ciência. Em conjunto, transformaram o castelo de Cirey, propriedade de du Châtelet, num dos centros de investigação científica mais importantes da época. A biblioteca rivalizava com a da Academia de Ciências de Paris. Os laboratórios foram equipados com o que de mais recente existia. Salas de conferências e acomodações privadas para convidados, promoviam as visitas frequentes de destacados cientistas. Émilie tinha um laboratório pessoal, onde nas paredes da área de leitura pendiam quadros originais de Antoine Watteau (1684-1721), pintor francês do movimento rococó. Voltaire tinha, também, uma área privada com passagem discreta entre o seu quarto e o dela.
Émilie era a verdadeira investigadora. Voltaire o estímulo permanente, o filósofo e o escritor de humor requintado, com uma cultura científica considerável. Por exemplo, "Micromegas" é uma história deliciosa, porventura glosando as "Viagens de Gulliver", onde um habitante da estrela Sirius (Micromegas) vai até Saturno, se encontra com um cientista local e ambos acabam por visitar a Terra. Micromegas tinha sido proibido de regressar a Sirius nos oitocentos anos seguintes, devido aos seus escritos excêntricos em que "tratava-se saber se a forma substancial das pulgas de Sirius era da mesma natureza da dos caracóis".
As investigações decorrentes em Cirey eram variadas. Entre outras, estudaram a combustão de substâncias e presume-se que se as balanças tivessem maior precisão teriam antecipado "a lei da conservação da massa" antes do nascimento de Antoine Lavoisier (1743-1794). Mas um dos problemas cruciais era a questão da energia enunciada acima. Émilie e colegas retomaram as experiências do físico holandês Willem 's Gravesande (1688-1742): largar pesos iguais na vertical sobre um piso de terra mole. Se mv fosse verdadeiro, então, um peso com o dobro da velocidade dum outro peso penetraria duas vezes mais no solo; outro com o triplo da velocidade penetraria três vezes mais e assim sucessivamente. No entanto, não foi o que Gravesande verificou: o peso com o dobro da velocidade penetrava quatro vezes mais; com o triplo da velocidade nove vezes mais, etc. Uma vez que a energia (E) determina o trabalho de penetração, a conclusão é que E deve ser proporcionalmv2 de acordo com Leibniz, e não a mv, segundo Newton. Simples e claro para toda a gente! Gravesande tinha um resultado robusto, mas não a formação teórica suficiente e quanto a Gottfried Leibniz (1646-1716) a sua proposta era apenas conjectural pois faltara-lhe o conhecimento da experiência. O grupo de Cirey uniu a teoria de Leibniz e a experiência de Gravesande estabelecendo, definitivamente, a definição quantitativa de energia cinética, E = k mv2. O estilo de escrita de Émilie era muito claro e as suas publicações tiveram um enorme impacto. No século seguinte, Michael Faraday (1791-1862), por exemplo, a elas recorreu. Diga-se, contudo, que a experiência de Gravesande não esclarece o valor da constante de proporcionalidade k que, neste caso particular, é 1/2.
Eis que, um século e meio depois, Albert Einstein (1879-1955) lança, em 1905 com a teoria da relatividade, um dos seus bem conhecidos ícones: E = mc2, onde c a velocidade da luz. Lá está, note-se, o produto da massa pelo quadrado da velocidade. A expressão é formalmente análoga à de Émile, se k = 1 e = c, mas muito mais abrangente e com um significado físico impressionante. Por um lado, mostra-se que ela conduz à forma particular de Cirey quando as velocidades envolvidas sejam muito, muito, muito menores do que a velocidade da luz (= 300000 km/s) o que se verifica para corpos materiais na maioria das situações do dia a dia; por outro lado, a expressão de Einstein é válida tanto para partículas materiais como para "partículas" de energia, por exemplo, os fotões que são os constituintes da luz e cuja velocidade é sempre c. Mais ainda, a expressão traduz uma equivalência entre massa e energia, ou seja, massa pode converter-se em energia e vice-versa, fundamentando as fontes brutais de energia nuclear. Tudo isto pode ler-se no livro de divulgação de David Bodanis indicado abaixo e, claro, pesquisando na Internet.
Émilie du Châtelet faleceu aos 43 anos vítima de uma infecção generalizada pós-parto. Voltaire ficou destroçado, mas utilizou o seu talento para divulgar o legado da amada. Com o rolar do tempo, porém, a "lei da morte", cantada por Camões, estendeu-se a Émilie como o fez a inúmeras mulheres, cientistas ou não, ao longo dos séculos, diga-se que com bastante menor peso para os homens. É muito bom constatar-se os esforços consideráveis nas últimas décadas para a igual dignificação da Mulher e do Homem, através de conferências pelo mundo fora, publicação de livros, ações a nível da União Europeia, ONGs etc. Não apenas no que se refere a memórias, mas também impondo para os vivos a implementação universal dos seus direitos inalienáveis. Apesar da atenuação ou mesmo eliminação, em alguns sectores, as desigualdades permanecem gritantes.
David Bodanis no prefácio do seu livro, conta que foi inspirado a escrevê-lo por uma entrevista, lida numa revista de cinema, à actriz Cameron Diaz que confessou o desejo de saber realmente o significado da equação de Einstein. Mais um belo exemplo (como "o binómio de Newton" de Álvaro de Campos?...) de que a Arte pode estimular a Ciência e vice-versa!...

("La Gamme d'Amour", A. Watteau)


Referências
[1] David Bodanis, "E = mc2, A Biografia da Equação mais Famosa do Mundo", Gradiva, 2001.
[2] "European Women in Chemistry", editors: J. Apotheker, L.S. Sarkadi, Wiley-VCH, 2011.
[3] Voltaire & The Divine Émilie
[4] Antoine Watteau
[5] Voltaire, "Micromegas", Livros de OZ, edições iman, 2003.
[6] Raquel Gonçalves Maia, "O Legado de Prometeu. Uma viagem na História das Ciências", Escolar Editora, 2006.
[7] Raquel Gonçalves Maia, "O Legado de Nobel. Perfis na Ciência do Século XX", Escolar Editora, 2008.
[8] Raquel Gonçalves Maia, "Dorothy Crowfoot Hodgkin", Edições Colibri, 2010.
[9] Raquel Gonçalves Maia, "Marie Sklodowska Curie", Edições Colibri, 2011.
[10] "Women in Science", UNESCO Institute for Statistics.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Diálogo entre Heisenberg e Einstein no cerne da Epistemologia

Em Abril de 1926, Werner Heisenberg, um jovem de 25 anos, encontrava-se na Universidade de Berlim proferindo uma palestra sobre a "mecânica de matrizes", uma teoria quântica dos átomos que ele tinha iniciado no ano anterior. Na fila da frente da assembleia estavam quatro laureados Nobel: Max von Laue, Walter Nernst, Max Planck e Albert Einstein. Os nervos do jovem, ao enfrentar pela 1ª vez tais personalidades, foram ultrapassados pela brilhante exposição que realizou. No final, Einstein convidou-o a terem "a little talk" no seu apartamento. No passeio até casa, informou-se sobre a família, educação e as investigações anteriores de Heisenberg.  Após sentados comodamente em casa, Einstein começou o diálogo:

"Você assume a existência de electrões no interior do átomo e provavelmente está certo, mas recusa-se a considerar as respectivas órbitas, embora possamos observar o rasto dos electrões em câmaras de nevoeiro. Gostarei muito de ouvir mais acerca do raciocínio das suas estranhas assunções".
Era o tipo de questão que Heisenberg esperava, segundo confessou mais tarde, para "vencer" o mestre de 47 anos, e ripostou:
"Não podemos observar as órbitas que os electrões descrevem no interior dos átomos, mas a radiação que um átomo emite habilita-nos a deduzir as frequências e amplitudes electrónicas. Como uma boa teoria deve ser baseada em grandezas directamente observáveis, eu pensei que seria mais plausível restringir-me a elas e tratá-las como sendo representativas das órbitas dos electrões".
"Mas, por certo, você não acredita seriamente que somente grandezas observáveis devam entrar numa teoria física?", disse Einstein.
A questão calou fundo em Heisenberg e atacou:
"Mas não foi precisamente o que você fez na teoria da relatividade?"
Einstein sorriu e desfechou:
"Um bom truque não deve ser tentado duas vezes!... Possivelmente utilizei esse tipo de raciocínio, mas é insensato de qualquer maneira. É completamente errado tentar fundamentar uma teoria somente em grandezas observáveis. Na realidade é o oposto que sucede: é a teoria que determina o que podemos observar. É óbvio que você assume na sua teoria que todo o mecanismo da transmissão da luz do átomo vibrante até ao espectroscópio, ou até ao olho, funciona exactamente como sempre temos suposto, isto é, de acordo com a teoria de Maxwell. Se não fosse este o caso, possivelmente não poderia observar qualquer das grandezas a que chama observável. A sua afirmação de que está a introduzir somente grandezas observáveis é, por conseguinte, uma assunção acerca de uma propriedade da teoria que você está tentando formular".
Esta "assunção" referida por Einstein é certamente uma insinuação subtil de que Heisenberg não tinha considerado que muitas observações experimentais dependem de teorias e instrumentos consequentes e, portanto, a teoria determina muitas vezes (cada vez mais, diga-se) o que pode observar-se. Heisenberg admitiu mais tarde: "Eu fiquei siderado com a atitude de Einstein, embora tivesse reconhecido que os seus argumentos eram convincentes". Curiosamente, foi a recordação da ideia de Einstein, "é a teoria que determina o que podemos observar", que deu a Heisenberg, meses depois, o impulso final para estabelecer o célebre princípio da incerteza.
Refira-se que na ocasião desta conversa a noção de orbital, ou seja, densidade de probabilidade electrónica em vez de órbitas clássicas como as dos planetas em torno do sol, ainda não estava assente. Por outro lado, quando em 1905 Einstein apresentou a teoria da relatividade, ele estava influenciado pelas ideias do físico e filósofo Ernst Mach (1838-1916) para quem o objectivo da ciência não era discernir a natureza da realidade, mas descrever os dados experimentais da maneira mais simples possível; cada conceito científico devia ser compreendido em termos operacionais - uma especificação de como podia ser medido. Foi sob a influência desta filosofia que Einstein desafiou os conceitos de espaço e tempo absolutos. No entanto, acabou por abandonar muitas das ideias de Mach porque, como disse a Heisenberg, "elas negligenciam o facto do mundo existir realmente e que as nossas impressões sensoriais são baseadas em alguma coisa objectiva".

Este diálogo tipifica uma das questões da epistemologia da ciência, entendo-se esta como o estudo dos sistemas de conhecimento científico e dos modos de o adquirir. Uma vez que muitas observações experimentais nas quais a estrutura da ciência se fundamenta são carregadas-de-teoria ("theory laden") é natural perguntar o que justifica as teorias elaboradas. Se as teorias científicas são distinguidas da especulação filosófica e mitos primitivos por serem, em última instância, radicadas em observações experimentais, e se o que pode ser observado é determinado por sua vez, em certa medida, por teorias, não estaremos envolvidos num círculo vicioso?
Esta questão é o ponto de partida para algumas das críticas à ciência que clamam ser os cientistas tão-somente um grupo de auto-declarados especialistas cuja compreensão da Natureza tem pouco valor cognitivo.

Na ocasião do diálogo, Albert Einstein (1879-1955) tinha mais 20 anos do que Werner Heisenberg (1901-1976) e estava bem treinado em debates epistemológicos. A teoria da relatividade restrita tinha sido publicada em 1905 e da relatividade generalizada em 1916. O seus debates históricos com Niels Bohr (1885-1962), sobre os fundamentos da física quântica, tinham-se iniciado no começo da década de 1920. Tinha feito contribuições da maior importância para a teoria quântica (aliás, o prémio Nobel foi-lhe atribuído pela interpretação quântica do fenómeno fotoeléctrico e não pela teoria da relatividade) apesar de se dizer, erradamente, que ele não acreditava na mecânica quântica. O jovem Heisenberg, já um promissor cientista, consagrado em 1927 com o seu famoso princípio da incerteza, ainda não estava bem seguro acerca da interpretação da sua "mecânica de matrizes", tanto mais que se debatia com a "mecânica ondulatória" que o seu "rival" Erwin Schrödinger (1887-1961) tinha publicado no início de 1926. Afinal, duas formulações matemáticas sobre os átomos totalmente equivalentes, embora com interpretações diferentes. Em 1933, ambos receberam o prémio Nobel da Física (em conjunto com Paul Dirac) pelas contribuições que deram à física quântica.
Einstein, um indefectível realista até ao fim da vida, defendeu que a física é uma tentativa de capturar a realidade tal como ela é, independentemente de ser ou não observada, e que a mecânica quântica é uma teoria incompleta, todavia uma excelente teoria estatística. Em contraponto com o seu amigo Bohr que defendeu uma realidade empírica onde o observador tem um papel crucial, e que a mecânica quântica é uma teoria completa traduzindo lúcida e matematicamente o resíduo irracional irredutível impossível de ultrapassar no esforço para adquirir conhecimento.
Após mais de um século do dealbar da teoria quântica, o debate sobre a verdadeira natureza da realidade continua aceso e longe de ser concluído. Num livro recente, "O Grande Desígnio", Stephen Hawking e Leonard Mlodinow lançam mais achas para a fogueira. Advogam uma realidade-dependente-de-modelos suavizando, pelo menos aparentemente, as questões espistemológicas.
Tudo isto constituí matéria que merece ser meditada e discutida, em especial com os mais novos. Para além do prazer intelectual, conduzirá certamente a novas ideias e a mais progressos.


 Referências
[1] Manjit Kumar, "Quantum", Icon Books, 2009.
[2] Roger G. Newton, "Thinking About Physics", Princeton University Press, 2000.
[3] Stephen Hawking, Leonard Mlodinow, "O Grande Desígnio", Gradiva, 2011.
[4] Werner Heisenberg, "Physics and Philosophy", Penguin Books, 1990.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

As Viagens de Gulliver. Laputa

As Viagens de Gulliver, da autoria do irlandês Jonathan Swift, 1726, têm sido adaptadas ao longo dos anos em variados contos onde pigmeus, gigantes e cavalos surgem no imaginário da nossa infância. A 3ª viagem de Gulliver, talvez a menos adaptada, foi à ilha Laputa, relevante na história da ciência porque o nome da ilha e a descrição da visita é uma sátira violenta sobre a ciência, em particular à Royal Society de Londres, fundada em 1660 pelo Rei Carlos II que desejou ser o patrono de uma instituição que representasse definitivamente a ascensão da ciência moderna.

Embora na Idade Média a actividade cultural não tivesse hibernado, foi a partir do Renascimento que o conhecimento nos vários domínios culturais teve avanços irreversíveis, estruturantes e globalizantes, em particular na ciência. Leonardo da Vinci (1452-1519), Nicolau Copérnico (1473-1543), Andreas Vesalius (1514-1564), Pedro Nunes (1502-1572), Thyco Brahe (1546-1601), Francis Bacon (1561-1626), Joahannes Kepler (1571-1630), William Harvey (1578-1657), René Descartes (1596-1650), Galileu Galilei (1564-1642), Robert Hooke (1627-1691) e Isaac Newton (1642-1727), ente muitos outros, contribuíram indelevelmente para o desenvolvimento da astronomia, navegação, matemática, física, biologia e medicina, culminando no Iluminismo (onde a emergência das ciências sociais é característica marcante) e apontando à Revolução Industrial e aos progressos impressionante do século XX. Entrou-se no que vulgarmente se designa por Era Moderna.

Factos políticos e sociais desses tempos são, por exemplo, a independência dos Estados Unidos da América (1776) e a Revolução Francesa (1789) com o famoso slogan "liberdade, igualdade e fraternidade". E, também, as hediondas decapitações da escritora francesa Olympe Grouges (1793), após ter publicado a "Declaração dos Direitos da Mulher", defendido Luís XVI e criticado Robespierre, e, do químico francês Antoine Lavoisier (1794), pai da química moderna, acusado (pelo despeitado médico Paul Marat) de fraude na humidificação das folhas de tabaco. Tudo isto, apesar do "princípio da inviolabilidade do indivíduo" na "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão" aprovada em 1789 pela Assembleia Nacional Francesa. De recordar, também, a escravatura, a pena de morte e a inquisição.

O método científico, a matemática entendida como linguagem da Natureza, o aparente determinismo dos fenómenos físicos com as suas leis e objectividade, a construção dos mais variados instrumentos, a implementação da química quantitativa, etc., afirmaram a ciência e a tecnologia como vectores culturais e civilizacionais para o progresso e bem-estar das sociedades.

Francis Bacon é considerado, pelo menos na cultura ocidental, como o mentor do método científico, destacando o papel crucial da experiência, do conhecimento racional e da capacidade humana para controlar a Natureza. Apesar da sua metodologia ser essencialmente indutiva, ainda não sublinhando a importância da hipótese e do raciocínio lógico-dedutivo, é indubitável que estimulou as descobertas e promoveu as aplicações práticas dos novos conhecimentos. Tanto mais servindo-se da sua influência social e política como procurador geral e lorde chanceler do Rei Jaime I de Inglaterra. Ironicamente, faleceu vítima de pneumonia após, numa noite de frio intenso, ter recheado um galináceo com neve para tentar demonstrar a importância da temperatura baixa na conservação da carne.
Em Avanço da Aprendizagem (1602), Bacon previu como a metodologia científica podia fornecer respostas, por exemplo, no prolongamento da vida e no desenvolvimento da agricultura. Em Novum Organum (1620), elegeu a imprensa, a pólvora e a bússola como as invenções que tinham transformado a literatura (recorde-se que Bacon foi contemporâneo de William Shakespeare), a guerra e a navegação. Nova Atlântida (1626) é uma obra de ficção, em que descreve a "Saloman's House" numa ilha utópica: um colégio de investigadores dedicados às descobertas e aplicações para o bem da comunidade, colectando e trocando informação através do mundo. "Conhecimento é poder", afirmou Bacon e, numa aparente invocação do deísmo, que "os homens devem saber que... somente Deus e os anjos são espectadores", estando aos homens reservada a aplicação activa do conhecimento.

Era de esperar que num mundo de "religiões reveladas", sensível a milagres, as ideias de Bacon fossem consideradas por muitos sectores como uma afronta às convicções religiosas e filosóficas dum Deus omnipotente. As reacções surgiram em catadupa e, eis que Gulliver descobre Laputa: uma ilha suspensa no espaço e habitada por estudiosos desafiando o senso comum. Embora fundamentada na lógica matemática, a academia desenvolve projectos tais como casas construídas do tecto para o chão, cores de tintas misturadas por cegos, produção de raios solares a partir de pepinos, e a transformação de gelo em pólvora e de excrementos em comida. Uma ilha de loucos motivados, afinal, pela bendita ciência! Mais, esses loucos possuem uma baixa moral, daí Jonathan Swift ter baptizado a ilha com o nome Laputa (a tradução espanhola e portuguesa do inglês "the whore"). De facto, o governo da ilha voadora pode suspender a seu prazer o sol e a chuva aos territórios subjacentes bem como arrasar qualquer povoação rebelde. Em suma, nas mãos desses imorais, mas  poderosos académicos, Laputa sugere a enorme ameaça que o método científico pode colocar!
Laputa pretendeu ser também, segundo alguns historiadores, uma crítica aos custos, praticabilidade e objectivos das explorações científicas da Royal Society de Londres. Curiosamente, diz-se que o seu patrono em 1660, o Rei Carlos II, estava impressionado com as tentativas dos investigadores em medir longitudes no mar, mas achava as discussões sobre o peso do ar cómicas e ridiculamente triviais. Enfim, o que dizer quando a autoridade cultural se mostra elusiva?...


Gulliver descobre a ilha voadora Laputa (ilustração de J. J. Grandville)

Referências
[1] Stanley W. Angrist, Loren G. Hepler, "Order and Chaos", Pelican Books, 1973.
[2] Sean F. Johnston, "History of Science", Oneworld Publications, Oxford, 2009.
[3] Raquel Gonçalves Maia, "O Legado de Prometeu. Uma Viagem na História das Ciências", Escolar Editora, 2006.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sebastião e Silva. "Espírito Libérrimo"

Numa homenagem a Bento de Jesus Caraça [1], Sebastião e Silva escreveu:

"A meu ver, são principalmente o sentido crítico e a autonomia mental as qualidades que um professor de matemática se deve esforçar por desenvolver nos seus alunos. O endeusar um cientista ou uma escola, é prática que se tem revelado pouco favorável, e por vezes funesta, ao desenvolvimento da Ciência. Quando hoje me acontece - o que não é raro - ver alguns jovens portugueses caídos em êxtase perante a obra desse admirável autor policéfalo que se chama Nicolas Bourbaki (a quem devo aliás grande parte da minha formação), apetece-me logo espicaçá-los, dizendo-lhes que estão em perigo mortal de fanatização. Eles olham-me com aquela incredulidade obstinada que a juventude exibe, por sistema, perante a velha geração (lá têm as suas razões, também). Lembro-lhes então que eu já conheço o respeitável autor há perto de 30 anos, quando ele estava ainda na primeira infância. Devo a António Monteiro o ter-me ensinado a descobrir os méritos reais da criança. Mas foi Bento Caraça quem me ajudou a prever os possíveis inconvenientes do estruturalismo de Bourbaki, bem como a maneira de os combater. O seu ponto de vista, neste caso, resume-se em poucas palavras: «A intuição, que se adquire e afina no contacto com os problemas reais, é cruel para quem a despreza: o seu castigo é a esterilidade». Eu sei que não basta a intuição, o contacto com a realidade: já se viu que a lógica é necessária, muito mais do que Poincaré podia imaginar! Mas, quando ao tentar fazer investigação, dou comigo às vezes a construir esquemas cada vez mais abstractos, sem finalidade, começo a ver o sorriso, entre irónico e afectuoso, de Bento Caraça, e julgo ouvir a sua voz dizer-me com lhaneza alentejana: «Amigo, você por esse caminho arrisca-se a ficar perdido em congeminações escolásticas: vai ser como um moinho, que mexe e remexe, sem nada dentro para moer».
Acordo então do meu devaneio, e prometo a mim mesmo ser mais razoável daí por diante".

José Sebastião e Silva (1914-1972), natural de Mértola, matemático, professor, investigador, pedagogo e pensador, produziu uma obra notável, reconhecida nacional e internacionalmente. A sua produção científica e pedagógica está bem referenciada e difundida em variados meios. No entanto, talvez que a sua face de humanista e de pensador não seja tão bem conhecida. Destacá-la, é o objectivo desta nota.
Por exemplo, "Humanista Interessado pelos Problemas da Linguagem" e "Espírito Libérrimo" são duas das secções da sua biografia [2], págs. 33-38, escrita em 1972 por António Andrade Guimarães, Professor da Universidade do Porto, e arquivada na Escola Secundária Sebastião e Silva, em Oeiras.
Os problemas da Universidade foram, naturalmente, uma das suas permanentes preocupações. Constam, por exemplo, no artigo publicado pelo jornal "A Capital" [3], em 1968. Como se comparam com os problemas actuais? Um excerto interessante do artigo:

"Outro ponto a salientar é o seguinte: a crise universitária em Portugal é um caso “sui generis”, que seria de todo erróneo equiparar ao de outros países da Europa. E vou já dizer porquê. A partir dos anos 30, a política progressiva do Instituto para a Alta Cultura permitiu a um número apreciável de jovens licenciados portugueses trabalharem, pela primeira vez, em meios universitários evoluídos, sob a orientação de professores que eram investigadores – alguns deles “prémios Nobel” famosos (Madame Curie, casal Juliot- Curie, J.Perrin, L. de Broglie). Foi um raiar de esperança no horizonte nacional! Infelizmente, ao regressar a Portugal, essa geração de pioneiros não encontrou um meio que estivesse preparado para os receber e, custa-me dizê-lo, a reacção mais viva que se lhes opôs, partiu da própria Universidade. Hoje, a situação é diferente: existe já nas próprias Universidades, um certo número de professores que são investigadores; porém a estrutura é a mesma e a incompreensão subsiste; mas esta vem agora, principalmente, do meio extra universitário".

Na página comemorativa do centenário do seu nascimento, encontram-se dados biográficos, lista de publicações e algumas obras digitalizadas [5]. Diga-se que o início da publicação dos Compêndios de Matemática e Guias, referentes à reforma do ensino da matemática na década de 1960, que nas turmas-piloto estavam na forma de folhas policopiadas, é devido ao esforço e entusiasmo do Professor António Brotas do IST, Secretário de Estado do Ensino Superior e Investigação Científica em 1975-76. E, também, as memórias e artigos originais de investigação científica, colectados pelos Professores J. Campos Ferreira (IST), J. Santos Guerreiro (FCUL) e J. Silva Oliveira (FCUL), e publicados pelo Instituto Nacional de Investigação Científica [6]. No Facebook também se encontra uma página comemorativa [7].

Em Outubro de 2000, após 28 anos do seu falecimento, foi outorgada e entregue aos filhos de Sebastião e Silva a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada, pelo Presidente da República Jorge Sampaio. 

No ano do centenário do seu nascimento, aqui fica uma relíquia da década de 1940:


A partir da esquerda: 1-Hugo Ribeiro, 2-, 3-Aniceto Monteiro, 4-Zaluar Nunes, 
5-Bento Caraça, 6-Maurice Fréchet, 7-Sebastião e Silva, 8-Rui Luiz Gomes, 9-, 10-
(Nota: esta foto foi-nos oferecida por José Sebastião e Silva; a legenda está conforme a manuscrita pelo próprio)

Agradecimento
A Carlos Sebastião e Silva pelos esclarecimentos que pronta e amigavelmente me prestou.

NOTA: a referência [8] foi incluída em Outubro de 2022

Referências
[1] J. Sebastião e Silva, "Bento Caraça e o Ensino da Matemática em Portugal" em "Homenagem a Bento de Jesus Caraça", Vértice, Vol. XXXVIII (nºs 412-413-414), Coimbra, 1978.
[2] A. Andrade Guimarães, "Vida e Obra do Professor José Sebastião e Silva", 1972; arquivo da Escola Secundária Sebastião e Silva, Oeiras.
[3] J. Sebastião e Silva, "Problemas da Universidade", jornal A Capital, 1968; arquivo da Escola Secundária Sebastião e Silva, Oeiras.
[5] Professor Sebastião e Silva, Centenário, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa.
[6] "Obras de José Sebastião e Silva (Volumes I, II e III)", Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1985.
[7] Facebook
[8] J. F. Rodrigues, "José Sebastião e Silva", Rev. Ciência Elem., V10(03):036, 2022.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Belmiro de Azevedo. Competitividade e Educação

Belmiro de Azevedo, licenciado em engenharia químico-industrial pela Universidade do Porto, doutor honoris causa pelas Universidades do Porto e dos Açores, e prestigiado empresário, foi Assistente da Universidade do Porto, entre 1965 e 1968, onde leccionou as disciplinas de "projecto industrial" e de "química orgânica industrial". Recentemente, um Professor da Universidade de Coimbra, que foi aluno de Belmiro de Azevedo, disse-me que ele tinha sido um dos docentes mais apreciados pela afabilidade, competência e exigência.
Ao longo da vida de empresário, Belmiro de Azevedo tem manifestado sempre as suas preocupações sobre a educação e a investigação em Portugal com sugestões concretas. O que, infelizmente, não é frequente no meio empresarial português.
O artigo anexo foi publicado no jornal Expresso de 13/4/2002. Julgo que será interessante meditar sobre qual tem sido o desempenho do Estado (onde incluo as autarquias) e de todas as instituições privadas relativamente aos pontos focados, há 12 anos, por Belmiro de Azevedo. No final do artigo há uma frase lapidar: "Muitos investigadores nem sequer imaginam quão úteis são às empresas". Como nestas coisas a reciprocidade é fundamental, pergunto-me: imaginarão sequer muitos empresários quão úteis são os investigadores?

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Ciência e Anarquia

Michael Brooks, doutorado em física quântica pela universidade de Sussex do Reino Unido, é autor do livro "Free Radicals. The Secret Anarchy of Science" publicado em 2011. O título é metafórico, traduzindo uma visita à "torre de marfim dos cientistas", imagem que a ciência oficial ainda não conseguiu eliminar da sociedade em geral. Destacando a importância da ciência, o livro aborda a intuição, emoção, sonhos e crenças de cientistas, o sistema de revisão por pares ("peer review") bem como casos de testes aplicados por investigadores a eles próprios com alto risco de vida, erros de interpretação e julgamento, omissão de alguns resultados experimentais para justificar teorias, dependência de drogas, etc., que acabaram por conduzir a descobertas e realizações científicas relevantes, ou ao apaziguamento de conflitos entre visões diferentes da realidade. Afinal, os cientistas também são seres humanos! Um dos exemplos envolve o Papa Bento XVI.

Em 2008, na universidade La Sapienza de Roma, uma manifestação de alunos - consubstanciada por uma carta assinada por 67 cientistas da faculdade de física - cancelou a visita de Bento XVI programada para a abertura do ano lectivo. A razão invocada era que em 1990, ainda Cardeal Joseph Ratzinger, tinha feito um discurso onde afirmou que a decisão da igreja em condenar Galileu (por ter defendido que a terra se movia em torno do sol, i.e., o modelo heliocêntrico de Copérnico) tinha sido "racional e justa" e que "a igreja no tempo de Galileu era muito mais fiel à verdade do que o próprio Galileu". Tais palavras "ofendem e humilham-nos", declaravam os signatários da carta. Foi quebrada uma regra essencial, pois se os cientistas signatários tivessem lido o discurso de Ratzinger na íntegra teriam verificado que ele não atacava a ciência, mas, pelo contrário, a defendia. Afinal, o que Ratzinger deplorou foi os que alinhavam com a condenação de Galileu pela igreja medieval, dando como exemplo o filósofo da ciência Paul Feyerabend. Na verdade, foi este filósofo que, em 1975, no livro "Against Method", analisou o caso Galileu versus papa Urbano VIII e escreveu as palavras invocadas pelos signatários que, erradamente, as atribuíram a Ratzinger. No discurso, o cardeal considerou a análise de Feyerabend "drástica" porque o filósofo sabia muito bem que Galileu tinha tido razão. Além disso, a radicais que sugeriam que a igreja deveria ter penalizado Galileu ainda mais, respondia que "a fé não cresce do ressentimento e da rejeição da racionalidade".

O julgamento de Galileu, segundo muitos historiadores, resultou do despeito de alguns cientistas da época que estimularam o envolvimento de teólogos na análise do modelo heliocêntrico à luz dos ensinamentos da Bíblia. Como se sabe, durante o magistério de João Paulo II (que Ratzinger já integrava quando proferiu o referido discurso) Galileu foi "reabilitado" e "absolvido" pela igreja católica, após um longo processo que decorreu de 1979 a 1992.
Existe, no entanto, uma outra versão sugerindo que o motivo essencial da oposição da igreja medieval se deveu mais à crença de Galileu no "atomismo" (i.e., de que todas as substâncias materiais são constituídas por átomos específicos) do que à sua defesa do modelo heliocêntrico. Por exemplo, Euan Squires diz que embora as palavras de Jesus Cristo ao partir um pedaço de pão na última ceia ("este é o meu corpo") sejam, em geral, compreendidas como figurativas, não o eram para a maioria dos sectores católicos tradicionais que as entendiam como se o pão se tornasse realmente o corpo de Cristo. O atomismo, ao reduzir o pão a um conjunto de meros "átomos" de farinha tornava questionável a "transubstanciação" implícita na comunhão sagrada, ao contrário da versão da realidade de Aristóteles em que "substância" tinha um sentido mais abrangente e menos materialista. Em suma, os movimentos relativos do sol e da terra não estariam tão profundamente envolvidos na doutrina da igreja como os santos sacramentos.
Quanto a Paul Feyerabend (1924-94), a sua filosofia advoga o "anarquismo teórico" cuja ideia talvez possa ser captada pela seguinte passagem do livro "Against Method":

Será que a ciência como a conhecemos hoje, uma "busca pela verdade" no estilo da filosofia tradicional, criará um monstro? Não será possível que uma abordagem objetiva que desaprova contatos pessoais entre entidades irá prejudicar as pessoas, torná-las miseráveis, hostis, criando mecanismos moralistas desprovidos de charme e humor? "Não será possível" pergunta-se Kierkegaard "que minha atividade como um objetivo [ou crítico-racional] observador da natureza enfraqueça meu potencial como ser humano?" Eu suspeito de que a resposta para muitas dessas questões seja afirmativa e eu acredito que a reforma das ciências para torná-las mais anárquicas e mais subjetivas (em um sentido Kierkegaardiano) é urgentemente necessária.

Criticou, também, a geração de cientistas do pós - II guerra mundial:

The withdrawal of philosophy into a "professional" shell of its own has had disastrous consequences. The younger generation of physicists, the Feynmans, the Schwingers, etc., may be very bright; they may be more intelligent than their predecessors, than Bohr, Einstein, Schrödinger, Boltzmann, Mach and so on. But they are uncivilized savages, they lack in philosophical depth – and this is the fault of the very same idea of professionalism which you are now defending.

É claro que uma análise detalhada exige a leitura cuidadosa da obra de Feyerabend. Vários filósofos opinam que ele foi, essencialmente, um "provocador agreste" no sentido de se discutir e avaliar o que chama "episódios anárquicos" sob o manto da objectividade da ciência. Os quais, diga-se, o livro de Brooks não nega, mas analisa cientificamente. Contudo, as passagens anteriores suscitam de imediato  questões como:
Não desvirtuará esta doutrina a objectividade da ciência e os frutos benéficos que, indubitavelmente, tem produzido? Não estimulará manifestações de pós-modernismo e relativismo radicais, de anti-ciência e de pseudo-ciência? Não são os cientistas humanos? Não aprovam contactos pessoais e o charme? Não têm sentido de humor, frequentemente como "Farpas"? Não apreciam filosofia, poesia e outras expressões da arte, e "coboiadas"? Que reforma anárquica e subjectiva prescreve Feyerabend para as ciências? Mais alterações dos programas escolares e de "estratégias pedagógicas"? Não foi Feynman um cientista "sui generis" e um magistral pedagogo e divulgador da ciência?

O livro de Brooks é um lúcido, esclarecedor e científico contraponto para as "provocações" filosóficas de Feyerabend que foi ao extremo de afirmar que a bruxaria é um meio tão válido como a ciência para obter conhecimento e, também, que em ciência "vale tudo". Todavia, Brooks não é meigo para a ciência oficial (política científica?) dizendo que ela veste os investigadores com demasiados "coletes de força" que atravancam o caminho da boa ciência, e defendendo:

The work of science is too precious, and - in this age of approaching environmental crisis - too urgent, to allow that to happen. But safe in the knowledge that the public can cope with truly human scientists, and empowered by the realisation that people no longer fear science, we can set scientists free to work in the way that gives them their best chance of making progress.

Curiosamente, Michael Brooks liderou, nas eleições britânicas de 2010, o "Partido da Ciência", disputando o lugar do deputado conservador David Tredinnick, um simpatizante da anti-ciência e das medicinas alternativas que gastou 700 libras do erário público em software astrológico (após denúncia pública em 2009 teve de reembolsar o Estado). Brooks, perdeu a eleição: teve 197 votos contra os 23132 de Tredinnick. Isto, na secular democracia britânica. Deu-me para imaginar o que sucederia, em Portugal, numa situação semelhante...


Referências
[1] Michael Brooks, "Free Radicals. The Secret Anarchy of Science", Profile Books, 2011.
[3] Carlos Fiolhais, "Um Filósofo sem Razão", De Rerum Natura, 2007.
[4] Alan Sokal, Jean Bricmont, "Imposturas Intelectuais", Gradiva, 1999.
[5] Frederico di Trocchio, "O Génio Incompreendido", Dinalivro, 2002.
[6] Euan Squires, "Conscious Mind in the Physical World", Adam Hilger, 1990.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Ojectividade da Ciência versus Realidade Objectiva

"Objectos e fenómenos físicos são independentes de preconceitos e opções pessoais, devendo as observações e as previsões de teorias científicas ter um adequado suporte experimental e/ou lógico-matemático, e os resultados divulgados publicamente com vista à sua ampla confirmação ou refutação". Esta é a linha mestra do que entendemos por objectividade da ciência. Por sua vez, a ciência é um corpo de conhecimentos - obtidos por métodos e instrumentos específicos - fonte de aplicações tecnológicas e de formas de pensamento e de acção, desafiando permanentemente ideias estabelecidas. Como produto da actividade intelectual humana é, obviamente, uma das componentes da Cultura. Do exposto, depreende-se facilmente o que, em ciência, se compreende por subjectividade, a qual, em última instância, se requer erradicada de qualquer actividade científica. No entanto, nada disto é incompatível com a intuição e a emoção de cada um dos cientistas, factores psicológicos de crucial importância para o progresso científico. Destes, trataremos numa outra nota.
O conceito de objectividade da ciência é confundido frequentemente com o de realidade objectiva. No âmbito da ciência, esta questão radica-se essencialmente na mecânica quântica que foi desenvolvida a partir do início do século XX. Tentaremos mostrar que a objectividade da ciência não é quebrada mesmo que a realidade objectiva o possa ser num certo sentido.
Atire-se uma moeda ao ar. Caí de cara ou de coroa? É imprevisível, é um processo aleatório, ao acaso, diz-se, só saberemos o resultado após o evento. Todavia, a moeda segue uma trajectória determinista regulada pelas leis de Newton (ver a nota: "Acaso, Caos e Irreversibilidade. Jogo de Cara ou Coroa?"). Na ausência do conhecimento exacto das condições iniciais da moeda (posição, força de impulso, resistência do ar, etc.) recorre-se ao conceito de probabilidade: se a moeda não for viciada, a probabilidade de cair de cara ou de coroa é 1/2 (2 possibilidades para 1 observação). Mas... se tivéssemos o conhecimento exacto das condições iniciais da moeda saberíamos exacta e antecipadamente o resultado porque, como já referido, o movimento da moeda é regulado pelas equações deterministas de Newton. A observação do resultado seria, então, apenas a constatação do que já sabíamos a priori. Ou seja, a "propriedade" cara ou coroa (resultado final) fica desde logo exactamente determinada no inicio do lançamento. De qualquer modo, acreditamos que existe uma realidade que "flui lá fora" independente do observador, em que os atributos dos objectos estão sempre "impressos" neles, quer olhemos para eles ou não. É a esta realidade que a ciência chama realidade objectiva. De forma poética: "full many a flower is born unseen, and waste its sweetness on the desert air" [1]. Alguém duvida?
O facto de se atribuírem probabilidades é tão-somente um recurso operacional porque não sabemos exactamente as condições iniciais da moeda, de contrário, o valor da probabilidade não seria necessário para o eventual conhecedor dessas condições e das leis de Newton. Ganharia sempre ao ignorante!... São, afinal, probabilidades não-intrinsecas ao processo, as quais se designam probabilidades estatísticas.
Suponhamos, agora, que as dimensões macroscópicas da moeda se reduzem a dimensões microscópicas. Nesse caso, entra em cena a mecânica quântica que, na sua formulação ortodoxa, afirma: "não é possível, em qualquer circunstância, mesmo ideal, conhecer exactamente as condições iniciais da moeda, mas apenas as probabilidades dos resultados possíveis. Somente após uma observação, se pode conhecer, efectivamente, qual é o resultado". E quais são, afinal, as possibilidades? Aqui surge o inesperado, o aparentemente paradoxal para quem, como nós, vive num ambiente macroscópico. Ei-las: cara, coroa e, também, uma sobreposição coerente de cara e coroa (esta, análoga ao famoso gato de Schrodinger: morto e vivo simultaneamente até que uma observação decida o seu estado!). Mas não pode definir-se o estado inicial? Pode ser definido, mas numa formulação diferente do caso de situações macroscópicas (também chamadas clássicas): a sua forma matemática tem logo incluídas probabilidades intrínsecas, designadas probabilidades quânticas. Contudo, as equações quânticas que regulam a evolução temporal da "moeda quântica" são deterministas! Ou seja, conhecido o estado quântico inicial pode prever-se exactamente qual o estado em qualquer instante posterior, mas, sublinhe-se, são equações deterministas para a evolução temporal de probabilidades intrínsecas, não para as "propriedades físicas" cara ou coroa que apenas podem conhecer-se após uma observação. Em suma, o determinismo também está presente na mecânica quântica.
Não existem propriamente "moedas quânticas", mas são bem conhecidas outras entidades físicas, formalmente análogas à moeda imaginária, que apresentam comportamentos quânticos típicos. Por exemplo: o electrão que tem as propriedades spin up ou spin down, o fotão que pode apresentar polarização vertical ou polarização horizontal, etc. Para todos eles, as previsões da mecânica quântica são rigorosa e experimentalmente verificadas, inclusivé as referidas sobreposições coerentes, os tais "gatinhos de Schrodinger". Porque não se verificam, então, essas sobreposições coerentes (também chamadas interferências) no nosso ambiente macroscópico? Pois bem, a teoria da decoerência (uma especialidade da mecânica quântica) mostra que, na grande maioria dos sistemas macroscópicos, bastam as perturbações exteriores (inclusivé as provocadas pelas observações pessoais) para eliminar, quase instantaneamente, tais sobreposições ou interferências. Como consequência, as probabilidades quânticas surgem semelhantes às probabilidades estatísticas, manifestando-se como as quase-certezas da mecânica de Newton. A figura seguinte (adaptada da referência [2]) ilustra a ideia para a moeda macroscópica. Note-se que a descrição quântica inclui a possibilidade das sobreposições coerentes.


Finalmente, a questão tão apreciada, especialmente pelos filósofos: se o universo é essencialmente regulado por leis quânticas que nos indicam o papel indispensável do observador (um sujeito) para decidir qual é, efectivamente, o resultado de qualquer medição, conclui-se que estamos perante uma "realidade subjectiva", numa "crise de objectividade da ciência" porque, afinal, a realidade "é criada pelo observador", não existindo o "fluir lá fora" independente do observador. Tal conclusão, se interpretada "à letra", torna-se abusiva. De facto, se diferentes grupos de investigadores em diversas partes do mundo realizarem experiências em sistemas quânticos semelhantes, obterão precisamente os mesmos resultados. Logo, de acordo com a linha mestra referida acima, a objectividade da ciência não é, de modo algum, quebrada. Como corolário, embora não exista uma realidade objectiva no estrito sentido clássico, é indubitável que existe uma realidade empírica (não subjectiva, sublinhe-se) que "flui lá fora" de acordo com as equações quânticas deterministas.

Referências

[1] E. Squires, "The Mystery of the Quantum World", 2nd edition, Institute of Physics Publishing, Bristol, 1994.
[2] M. Tegmark, J.A. Wheeler, "100 Years of Quantum Mysteries", Scientific American, pags. 72-79, Februray, 2001.
[3] J. Baggott, "Beyond Measure. Modern Physics, Philosophy and the Meaning of Quantum Theory", Oxforfd University Press, 2004.
[4] L. Alcácer, "Introdução à Química Quântica Computacional", IST Press, Lisboa, 2007.
[5] F. Fernandes, "On decoherence theory", Centro de Ciências Moleculares e Materiais, 2012.