sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Émilie du Châtelet e Voltaire. Ciência, Amor e Arte

                                      O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
                                      O que há é pouca gente para dar por isso.
                                       óóóó - óóóóóóóóó - óóóóóóóóóóóóóóó
                                      (O vento lá fora.)
                                                                     Álvaro de Campos, 1928

Considere-se um corpo material de massa m, deslocando-se com velocidade v. Diz-se que o corpo possui energia cinética. Como deve quantificar-se essa energia? Através do produto da massa do corpo pela sua velocidade (mv) conforme Newton admitiu como hipótese, ou do produto da massa pelo quadrado da velocidade (mv2) conforme Leibniz conjecturou?
Esta foi uma das grandes questões de Émilie du Châtelet (1706-1749) na primeira metade do século XVIII. Filha de aristocratas, aos 16 anos levaram-na para Versalhes, mas nunca se interessou pela vida dos salões da nobre sociedade francesa, nem frequentou bailes de debutantes. Em vez disso, lia a geometria analítica de Descartes e os trabalhos de Newton e de Leibniz. Dedicou a sua vida à ciência, ao amor e à arte. Cedo descobriu um marido de conveniência, du Châtelet, militar rico que passava a maior parte do tempo em campanhas distantes e que, como costume da época, aceitava os encontros amorosos de Émilie durante a sua ausência. Neles, ela encontrou o amor da sua vida: Voltaire, pseudónimo de François Arouet (1694-1778), escritor e filósofo iluminista francês.
Voltaire viveu alguns anos em Inglaterra onde se familiarizou com a jovem mecânica de Isaac Newton (1642-1727) e a filosofia política de John Locke (1632-1704) que a ela foi beber inspiração.
Regressado a França, que melhor "alma-gémea" poderia ter encontrado, durante uma ópera, senão a de Émilie? Tinham interesses comuns: reforma política, literatura e arte e, sobretudo, o avanço da ciência. Em conjunto, transformaram o castelo de Cirey, propriedade de du Châtelet, num dos centros de investigação científica mais importantes da época. A biblioteca rivalizava com a da Academia de Ciências de Paris. Os laboratórios foram equipados com o que de mais recente existia. Salas de conferências e acomodações privadas para convidados, promoviam as visitas frequentes de destacados cientistas. Émilie tinha um laboratório pessoal, onde nas paredes da área de leitura pendiam quadros originais de Antoine Watteau (1684-1721), pintor francês do movimento rococó. Voltaire tinha, também, uma área privada com passagem discreta entre o seu quarto e o dela.
Émilie era a verdadeira investigadora. Voltaire o estímulo permanente, o filósofo e o escritor de humor requintado, com uma cultura científica considerável. Por exemplo, "Micromegas" é uma história deliciosa, porventura glosando as "Viagens de Gulliver", onde um habitante da estrela Sirius (Micromegas) vai até Saturno, se encontra com um cientista local e ambos acabam por visitar a Terra. Micromegas tinha sido proibido de regressar a Sirius nos oitocentos anos seguintes, devido aos seus escritos excêntricos em que "tratava-se saber se a forma substancial das pulgas de Sirius era da mesma natureza da dos caracóis".
As investigações decorrentes em Cirey eram variadas. Entre outras, estudaram a combustão de substâncias e presume-se que se as balanças tivessem maior precisão teriam antecipado "a lei da conservação da massa" antes do nascimento de Antoine Lavoisier (1743-1794). Mas um dos problemas cruciais era a questão da energia enunciada acima. Émilie e colegas retomaram as experiências do físico holandês Willem 's Gravesande (1688-1742): largar pesos iguais na vertical sobre um piso de terra mole. Se mv fosse verdadeiro, então, um peso com o dobro da velocidade dum outro peso penetraria duas vezes mais no solo; outro com o triplo da velocidade penetraria três vezes mais e assim sucessivamente. No entanto, não foi o que Gravesande verificou: o peso com o dobro da velocidade penetrava quatro vezes mais; com o triplo da velocidade nove vezes mais, etc. Uma vez que a energia (E) determina o trabalho de penetração, a conclusão é que E deve ser proporcionalmv2 de acordo com Leibniz, e não a mv, segundo Newton. Simples e claro para toda a gente! Gravesande tinha um resultado robusto, mas não a formação teórica suficiente e quanto a Gottfried Leibniz (1646-1716) a sua proposta era apenas conjectural pois faltara-lhe o conhecimento da experiência. O grupo de Cirey uniu a teoria de Leibniz e a experiência de Gravesande estabelecendo, definitivamente, a definição quantitativa de energia cinética, E = k mv2. O estilo de escrita de Émilie era muito claro e as suas publicações tiveram um enorme impacto. No século seguinte, Michael Faraday (1791-1862), por exemplo, a elas recorreu. Diga-se, contudo, que a experiência de Gravesande não esclarece o valor da constante de proporcionalidade k que, neste caso particular, é 1/2.
Eis que, um século e meio depois, Albert Einstein (1879-1955) lança, em 1905 com a teoria da relatividade, um dos seus bem conhecidos ícones: E = mc2, onde c a velocidade da luz. Lá está, note-se, o produto da massa pelo quadrado da velocidade. A expressão é formalmente análoga à de Émile, se k = 1 e = c, mas muito mais abrangente e com um significado físico impressionante. Por um lado, mostra-se que ela conduz à forma particular de Cirey quando as velocidades envolvidas sejam muito, muito, muito menores do que a velocidade da luz (= 300000 km/s) o que se verifica para corpos materiais na maioria das situações do dia a dia; por outro lado, a expressão de Einstein é válida tanto para partículas materiais como para "partículas" de energia, por exemplo, os fotões que são os constituintes da luz e cuja velocidade é sempre c. Mais ainda, a expressão traduz uma equivalência entre massa e energia, ou seja, massa pode converter-se em energia e vice-versa, fundamentando as fontes brutais de energia nuclear. Tudo isto pode ler-se no livro de divulgação de David Bodanis indicado abaixo e, claro, pesquisando na Internet.
Émilie du Châtelet faleceu aos 43 anos vítima de uma infecção generalizada pós-parto. Voltaire ficou destroçado, mas utilizou o seu talento para divulgar o legado da amada. Com o rolar do tempo, porém, a "lei da morte", cantada por Camões, estendeu-se a Émilie como o fez a inúmeras mulheres, cientistas ou não, ao longo dos séculos, diga-se que com bastante menor peso para os homens. É muito bom constatar-se os esforços consideráveis nas últimas décadas para a igual dignificação da Mulher e do Homem, através de conferências pelo mundo fora, publicação de livros, ações a nível da União Europeia, ONGs etc. Não apenas no que se refere a memórias, mas também impondo para os vivos a implementação universal dos seus direitos inalienáveis. Apesar da atenuação ou mesmo eliminação, em alguns sectores, as desigualdades permanecem gritantes.
David Bodanis no prefácio do seu livro, conta que foi inspirado a escrevê-lo por uma entrevista, lida numa revista de cinema, à actriz Cameron Diaz que confessou o desejo de saber realmente o significado da equação de Einstein. Mais um belo exemplo (como "o binómio de Newton" de Álvaro de Campos?...) de que a Arte pode estimular a Ciência e vice-versa!...

("La Gamme d'Amour", A. Watteau)


Referências
[1] David Bodanis, "E = mc2, A Biografia da Equação mais Famosa do Mundo", Gradiva, 2001.
[2] "European Women in Chemistry", editors: J. Apotheker, L.S. Sarkadi, Wiley-VCH, 2011.
[3] Voltaire & The Divine Émilie
[4] Antoine Watteau
[5] Voltaire, "Micromegas", Livros de OZ, edições iman, 2003.
[6] Raquel Gonçalves Maia, "O Legado de Prometeu. Uma viagem na História das Ciências", Escolar Editora, 2006.
[7] Raquel Gonçalves Maia, "O Legado de Nobel. Perfis na Ciência do Século XX", Escolar Editora, 2008.
[8] Raquel Gonçalves Maia, "Dorothy Crowfoot Hodgkin", Edições Colibri, 2010.
[9] Raquel Gonçalves Maia, "Marie Sklodowska Curie", Edições Colibri, 2011.
[10] "Women in Science", UNESCO Institute for Statistics.