terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Diálogo entre Heisenberg e Einstein no cerne da Epistemologia

Em Abril de 1926, Werner Heisenberg, um jovem de 25 anos, encontrava-se na Universidade de Berlim proferindo uma palestra sobre a "mecânica de matrizes", uma teoria quântica dos átomos que ele tinha iniciado no ano anterior. Na fila da frente da assembleia estavam quatro laureados Nobel: Max von Laue, Walter Nernst, Max Planck e Albert Einstein. Os nervos do jovem, ao enfrentar pela 1ª vez tais personalidades, foram ultrapassados pela brilhante exposição que realizou. No final, Einstein convidou-o a terem "a little talk" no seu apartamento. No passeio até casa, informou-se sobre a família, educação e as investigações anteriores de Heisenberg.  Após sentados comodamente em casa, Einstein começou o diálogo:

"Você assume a existência de electrões no interior do átomo e provavelmente está certo, mas recusa-se a considerar as respectivas órbitas, embora possamos observar o rasto dos electrões em câmaras de nevoeiro. Gostarei muito de ouvir mais acerca do raciocínio das suas estranhas assunções".
Era o tipo de questão que Heisenberg esperava, segundo confessou mais tarde, para "vencer" o mestre de 47 anos, e ripostou:
"Não podemos observar as órbitas que os electrões descrevem no interior dos átomos, mas a radiação que um átomo emite habilita-nos a deduzir as frequências e amplitudes electrónicas. Como uma boa teoria deve ser baseada em grandezas directamente observáveis, eu pensei que seria mais plausível restringir-me a elas e tratá-las como sendo representativas das órbitas dos electrões".
"Mas, por certo, você não acredita seriamente que somente grandezas observáveis devam entrar numa teoria física?", disse Einstein.
A questão calou fundo em Heisenberg e atacou:
"Mas não foi precisamente o que você fez na teoria da relatividade?"
Einstein sorriu e desfechou:
"Um bom truque não deve ser tentado duas vezes!... Possivelmente utilizei esse tipo de raciocínio, mas é insensato de qualquer maneira. É completamente errado tentar fundamentar uma teoria somente em grandezas observáveis. Na realidade é o oposto que sucede: é a teoria que determina o que podemos observar. É óbvio que você assume na sua teoria que todo o mecanismo da transmissão da luz do átomo vibrante até ao espectroscópio, ou até ao olho, funciona exactamente como sempre temos suposto, isto é, de acordo com a teoria de Maxwell. Se não fosse este o caso, possivelmente não poderia observar qualquer das grandezas a que chama observável. A sua afirmação de que está a introduzir somente grandezas observáveis é, por conseguinte, uma assunção acerca de uma propriedade da teoria que você está tentando formular".
Esta "assunção" referida por Einstein é certamente uma insinuação subtil de que Heisenberg não tinha considerado que muitas observações experimentais dependem de teorias e instrumentos consequentes e, portanto, a teoria determina muitas vezes (cada vez mais, diga-se) o que pode observar-se. Heisenberg admitiu mais tarde: "Eu fiquei siderado com a atitude de Einstein, embora tivesse reconhecido que os seus argumentos eram convincentes". Curiosamente, foi a recordação da ideia de Einstein, "é a teoria que determina o que podemos observar", que deu a Heisenberg, meses depois, o impulso final para estabelecer o célebre princípio da incerteza.
Refira-se que na ocasião desta conversa a noção de orbital, ou seja, densidade de probabilidade electrónica em vez de órbitas clássicas como as dos planetas em torno do sol, ainda não estava assente. Por outro lado, quando em 1905 Einstein apresentou a teoria da relatividade, ele estava influenciado pelas ideias do físico e filósofo Ernst Mach (1838-1916) para quem o objectivo da ciência não era discernir a natureza da realidade, mas descrever os dados experimentais da maneira mais simples possível; cada conceito científico devia ser compreendido em termos operacionais - uma especificação de como podia ser medido. Foi sob a influência desta filosofia que Einstein desafiou os conceitos de espaço e tempo absolutos. No entanto, acabou por abandonar muitas das ideias de Mach porque, como disse a Heisenberg, "elas negligenciam o facto do mundo existir realmente e que as nossas impressões sensoriais são baseadas em alguma coisa objectiva".

Este diálogo tipifica uma das questões da epistemologia da ciência, entendo-se esta como o estudo dos sistemas de conhecimento científico e dos modos de o adquirir. Uma vez que muitas observações experimentais nas quais a estrutura da ciência se fundamenta são carregadas-de-teoria ("theory laden") é natural perguntar o que justifica as teorias elaboradas. Se as teorias científicas são distinguidas da especulação filosófica e mitos primitivos por serem, em última instância, radicadas em observações experimentais, e se o que pode ser observado é determinado por sua vez, em certa medida, por teorias, não estaremos envolvidos num círculo vicioso?
Esta questão é o ponto de partida para algumas das críticas à ciência que clamam ser os cientistas tão-somente um grupo de auto-declarados especialistas cuja compreensão da Natureza tem pouco valor cognitivo.

Na ocasião do diálogo, Albert Einstein (1879-1955) tinha mais 20 anos do que Werner Heisenberg (1901-1976) e estava bem treinado em debates epistemológicos. A teoria da relatividade restrita tinha sido publicada em 1905 e da relatividade generalizada em 1916. O seus debates históricos com Niels Bohr (1885-1962), sobre os fundamentos da física quântica, tinham-se iniciado no começo da década de 1920. Tinha feito contribuições da maior importância para a teoria quântica (aliás, o prémio Nobel foi-lhe atribuído pela interpretação quântica do fenómeno fotoeléctrico e não pela teoria da relatividade) apesar de se dizer, erradamente, que ele não acreditava na mecânica quântica. O jovem Heisenberg, já um promissor cientista, consagrado em 1927 com o seu famoso princípio da incerteza, ainda não estava bem seguro acerca da interpretação da sua "mecânica de matrizes", tanto mais que se debatia com a "mecânica ondulatória" que o seu "rival" Erwin Schrödinger (1887-1961) tinha publicado no início de 1926. Afinal, duas formulações matemáticas sobre os átomos totalmente equivalentes, embora com interpretações diferentes. Em 1933, ambos receberam o prémio Nobel da Física (em conjunto com Paul Dirac) pelas contribuições que deram à física quântica.
Einstein, um indefectível realista até ao fim da vida, defendeu que a física é uma tentativa de capturar a realidade tal como ela é, independentemente de ser ou não observada, e que a mecânica quântica é uma teoria incompleta, todavia uma excelente teoria estatística. Em contraponto com o seu amigo Bohr que defendeu uma realidade empírica onde o observador tem um papel crucial, e que a mecânica quântica é uma teoria completa traduzindo lúcida e matematicamente o resíduo irracional irredutível impossível de ultrapassar no esforço para adquirir conhecimento.
Após mais de um século do dealbar da teoria quântica, o debate sobre a verdadeira natureza da realidade continua aceso e longe de ser concluído. Num livro recente, "O Grande Desígnio", Stephen Hawking e Leonard Mlodinow lançam mais achas para a fogueira. Advogam uma realidade-dependente-de-modelos suavizando, pelo menos aparentemente, as questões espistemológicas.
Tudo isto constituí matéria que merece ser meditada e discutida, em especial com os mais novos. Para além do prazer intelectual, conduzirá certamente a novas ideias e a mais progressos.


 Referências
[1] Manjit Kumar, "Quantum", Icon Books, 2009.
[2] Roger G. Newton, "Thinking About Physics", Princeton University Press, 2000.
[3] Stephen Hawking, Leonard Mlodinow, "O Grande Desígnio", Gradiva, 2011.
[4] Werner Heisenberg, "Physics and Philosophy", Penguin Books, 1990.