sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sebastião e Silva. "Espírito Libérrimo"

Numa homenagem a Bento de Jesus Caraça [1], Sebastião e Silva escreveu:

"A meu ver, são principalmente o sentido crítico e a autonomia mental as qualidades que um professor de matemática se deve esforçar por desenvolver nos seus alunos. O endeusar um cientista ou uma escola, é prática que se tem revelado pouco favorável, e por vezes funesta, ao desenvolvimento da Ciência. Quando hoje me acontece - o que não é raro - ver alguns jovens portugueses caídos em êxtase perante a obra desse admirável autor policéfalo que se chama Nicolas Bourbaki (a quem devo aliás grande parte da minha formação), apetece-me logo espicaçá-los, dizendo-lhes que estão em perigo mortal de fanatização. Eles olham-me com aquela incredulidade obstinada que a juventude exibe, por sistema, perante a velha geração (lá têm as suas razões, também). Lembro-lhes então que eu já conheço o respeitável autor há perto de 30 anos, quando ele estava ainda na primeira infância. Devo a António Monteiro o ter-me ensinado a descobrir os méritos reais da criança. Mas foi Bento Caraça quem me ajudou a prever os possíveis inconvenientes do estruturalismo de Bourbaki, bem como a maneira de os combater. O seu ponto de vista, neste caso, resume-se em poucas palavras: «A intuição, que se adquire e afina no contacto com os problemas reais, é cruel para quem a despreza: o seu castigo é a esterilidade». Eu sei que não basta a intuição, o contacto com a realidade: já se viu que a lógica é necessária, muito mais do que Poincaré podia imaginar! Mas, quando ao tentar fazer investigação, dou comigo às vezes a construir esquemas cada vez mais abstractos, sem finalidade, começo a ver o sorriso, entre irónico e afectuoso, de Bento Caraça, e julgo ouvir a sua voz dizer-me com lhaneza alentejana: «Amigo, você por esse caminho arrisca-se a ficar perdido em congeminações escolásticas: vai ser como um moinho, que mexe e remexe, sem nada dentro para moer».
Acordo então do meu devaneio, e prometo a mim mesmo ser mais razoável daí por diante".

José Sebastião e Silva (1914-1972), natural de Mértola, matemático, professor, investigador, pedagogo e pensador, produziu uma obra notável, reconhecida nacional e internacionalmente. A sua produção científica e pedagógica está bem referenciada e difundida em variados meios. No entanto, talvez que a sua face de humanista e de pensador não seja tão bem conhecida. Destacá-la, é o objectivo desta nota.
Por exemplo, "Humanista Interessado pelos Problemas da Linguagem" e "Espírito Libérrimo" são duas das secções da sua biografia [2], págs. 33-38, escrita em 1972 por António Andrade Guimarães, Professor da Universidade do Porto, e arquivada na Escola Secundária Sebastião e Silva, em Oeiras.
Os problemas da Universidade foram, naturalmente, uma das suas permanentes preocupações. Constam, por exemplo, no artigo publicado pelo jornal "A Capital" [3], em 1968. Como se comparam com os problemas actuais? Um excerto interessante do artigo:

"Outro ponto a salientar é o seguinte: a crise universitária em Portugal é um caso “sui generis”, que seria de todo erróneo equiparar ao de outros países da Europa. E vou já dizer porquê. A partir dos anos 30, a política progressiva do Instituto para a Alta Cultura permitiu a um número apreciável de jovens licenciados portugueses trabalharem, pela primeira vez, em meios universitários evoluídos, sob a orientação de professores que eram investigadores – alguns deles “prémios Nobel” famosos (Madame Curie, casal Juliot- Curie, J.Perrin, L. de Broglie). Foi um raiar de esperança no horizonte nacional! Infelizmente, ao regressar a Portugal, essa geração de pioneiros não encontrou um meio que estivesse preparado para os receber e, custa-me dizê-lo, a reacção mais viva que se lhes opôs, partiu da própria Universidade. Hoje, a situação é diferente: existe já nas próprias Universidades, um certo número de professores que são investigadores; porém a estrutura é a mesma e a incompreensão subsiste; mas esta vem agora, principalmente, do meio extra universitário".

Na página comemorativa do centenário do seu nascimento, encontram-se dados biográficos, lista de publicações e algumas obras digitalizadas [5]. Diga-se que o início da publicação dos Compêndios de Matemática e Guias, referentes à reforma do ensino da matemática na década de 1960, que nas turmas-piloto estavam na forma de folhas policopiadas, é devido ao esforço e entusiasmo do Professor António Brotas do IST, Secretário de Estado do Ensino Superior e Investigação Científica em 1975-76. E, também, as memórias e artigos originais de investigação científica, colectados pelos Professores J. Campos Ferreira (IST), J. Santos Guerreiro (FCUL) e J. Silva Oliveira (FCUL), e publicados pelo Instituto Nacional de Investigação Científica [6]. No Facebook também se encontra uma página comemorativa [7].

Em Outubro de 2000, após 28 anos do seu falecimento, foi outorgada e entregue aos filhos de Sebastião e Silva a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada, pelo Presidente da República Jorge Sampaio. 

No ano do centenário do seu nascimento, aqui fica uma relíquia da década de 1940:


A partir da esquerda: 1-Hugo Ribeiro, 2-, 3-Aniceto Monteiro, 4-Zaluar Nunes, 
5-Bento Caraça, 6-Maurice Fréchet, 7-Sebastião e Silva, 8-Rui Luiz Gomes, 9-, 10-
(Nota: esta foto foi-nos oferecida por José Sebastião e Silva; a legenda está conforme a manuscrita pelo próprio)

Agradecimento
A Carlos Sebastião e Silva pelos esclarecimentos que pronta e amigavelmente me prestou.

NOTA: a referência [8] foi incluída em Outubro de 2022

Referências
[1] J. Sebastião e Silva, "Bento Caraça e o Ensino da Matemática em Portugal" em "Homenagem a Bento de Jesus Caraça", Vértice, Vol. XXXVIII (nºs 412-413-414), Coimbra, 1978.
[2] A. Andrade Guimarães, "Vida e Obra do Professor José Sebastião e Silva", 1972; arquivo da Escola Secundária Sebastião e Silva, Oeiras.
[3] J. Sebastião e Silva, "Problemas da Universidade", jornal A Capital, 1968; arquivo da Escola Secundária Sebastião e Silva, Oeiras.
[5] Professor Sebastião e Silva, Centenário, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa.
[6] "Obras de José Sebastião e Silva (Volumes I, II e III)", Instituto Nacional de Investigação Científica, Lisboa, 1985.
[7] Facebook
[8] J. F. Rodrigues, "José Sebastião e Silva", Rev. Ciência Elem., V10(03):036, 2022.