domingo, 2 de fevereiro de 2014

Ciência e Anarquia

Michael Brooks, doutorado em física quântica pela universidade de Sussex do Reino Unido, é autor do livro "Free Radicals. The Secret Anarchy of Science" publicado em 2011. O título é metafórico, traduzindo uma visita à "torre de marfim dos cientistas", imagem que a ciência oficial ainda não conseguiu eliminar da sociedade em geral. Destacando a importância da ciência, o livro aborda a intuição, emoção, sonhos e crenças de cientistas, o sistema de revisão por pares ("peer review") bem como casos de testes aplicados por investigadores a eles próprios com alto risco de vida, erros de interpretação e julgamento, omissão de alguns resultados experimentais para justificar teorias, dependência de drogas, etc., que acabaram por conduzir a descobertas e realizações científicas relevantes, ou ao apaziguamento de conflitos entre visões diferentes da realidade. Afinal, os cientistas também são seres humanos! Um dos exemplos envolve o Papa Bento XVI.

Em 2008, na universidade La Sapienza de Roma, uma manifestação de alunos - consubstanciada por uma carta assinada por 67 cientistas da faculdade de física - cancelou a visita de Bento XVI programada para a abertura do ano lectivo. A razão invocada era que em 1990, ainda Cardeal Joseph Ratzinger, tinha feito um discurso onde afirmou que a decisão da igreja em condenar Galileu (por ter defendido que a terra se movia em torno do sol, i.e., o modelo heliocêntrico de Copérnico) tinha sido "racional e justa" e que "a igreja no tempo de Galileu era muito mais fiel à verdade do que o próprio Galileu". Tais palavras "ofendem e humilham-nos", declaravam os signatários da carta. Foi quebrada uma regra essencial, pois se os cientistas signatários tivessem lido o discurso de Ratzinger na íntegra teriam verificado que ele não atacava a ciência, mas, pelo contrário, a defendia. Afinal, o que Ratzinger deplorou foi os que alinhavam com a condenação de Galileu pela igreja medieval, dando como exemplo o filósofo da ciência Paul Feyerabend. Na verdade, foi este filósofo que, em 1975, no livro "Against Method", analisou o caso Galileu versus papa Urbano VIII e escreveu as palavras invocadas pelos signatários que, erradamente, as atribuíram a Ratzinger. No discurso, o cardeal considerou a análise de Feyerabend "drástica" porque o filósofo sabia muito bem que Galileu tinha tido razão. Além disso, a radicais que sugeriam que a igreja deveria ter penalizado Galileu ainda mais, respondia que "a fé não cresce do ressentimento e da rejeição da racionalidade".

O julgamento de Galileu, segundo muitos historiadores, resultou do despeito de alguns cientistas da época que estimularam o envolvimento de teólogos na análise do modelo heliocêntrico à luz dos ensinamentos da Bíblia. Como se sabe, durante o magistério de João Paulo II (que Ratzinger já integrava quando proferiu o referido discurso) Galileu foi "reabilitado" e "absolvido" pela igreja católica, após um longo processo que decorreu de 1979 a 1992.
Existe, no entanto, uma outra versão sugerindo que o motivo essencial da oposição da igreja medieval se deveu mais à crença de Galileu no "atomismo" (i.e., de que todas as substâncias materiais são constituídas por átomos específicos) do que à sua defesa do modelo heliocêntrico. Por exemplo, Euan Squires diz que embora as palavras de Jesus Cristo ao partir um pedaço de pão na última ceia ("este é o meu corpo") sejam, em geral, compreendidas como figurativas, não o eram para a maioria dos sectores católicos tradicionais que as entendiam como se o pão se tornasse realmente o corpo de Cristo. O atomismo, ao reduzir o pão a um conjunto de meros "átomos" de farinha tornava questionável a "transubstanciação" implícita na comunhão sagrada, ao contrário da versão da realidade de Aristóteles em que "substância" tinha um sentido mais abrangente e menos materialista. Em suma, os movimentos relativos do sol e da terra não estariam tão profundamente envolvidos na doutrina da igreja como os santos sacramentos.
Quanto a Paul Feyerabend (1924-94), a sua filosofia advoga o "anarquismo teórico" cuja ideia talvez possa ser captada pela seguinte passagem do livro "Against Method":

Será que a ciência como a conhecemos hoje, uma "busca pela verdade" no estilo da filosofia tradicional, criará um monstro? Não será possível que uma abordagem objetiva que desaprova contatos pessoais entre entidades irá prejudicar as pessoas, torná-las miseráveis, hostis, criando mecanismos moralistas desprovidos de charme e humor? "Não será possível" pergunta-se Kierkegaard "que minha atividade como um objetivo [ou crítico-racional] observador da natureza enfraqueça meu potencial como ser humano?" Eu suspeito de que a resposta para muitas dessas questões seja afirmativa e eu acredito que a reforma das ciências para torná-las mais anárquicas e mais subjetivas (em um sentido Kierkegaardiano) é urgentemente necessária.

Criticou, também, a geração de cientistas do pós - II guerra mundial:

The withdrawal of philosophy into a "professional" shell of its own has had disastrous consequences. The younger generation of physicists, the Feynmans, the Schwingers, etc., may be very bright; they may be more intelligent than their predecessors, than Bohr, Einstein, Schrödinger, Boltzmann, Mach and so on. But they are uncivilized savages, they lack in philosophical depth – and this is the fault of the very same idea of professionalism which you are now defending.

É claro que uma análise detalhada exige a leitura cuidadosa da obra de Feyerabend. Vários filósofos opinam que ele foi, essencialmente, um "provocador agreste" no sentido de se discutir e avaliar o que chama "episódios anárquicos" sob o manto da objectividade da ciência. Os quais, diga-se, o livro de Brooks não nega, mas analisa cientificamente. Contudo, as passagens anteriores suscitam de imediato  questões como:
Não desvirtuará esta doutrina a objectividade da ciência e os frutos benéficos que, indubitavelmente, tem produzido? Não estimulará manifestações de pós-modernismo e relativismo radicais, de anti-ciência e de pseudo-ciência? Não são os cientistas humanos? Não aprovam contactos pessoais e o charme? Não têm sentido de humor, frequentemente como "Farpas"? Não apreciam filosofia, poesia e outras expressões da arte, e "coboiadas"? Que reforma anárquica e subjectiva prescreve Feyerabend para as ciências? Mais alterações dos programas escolares e de "estratégias pedagógicas"? Não foi Feynman um cientista "sui generis" e um magistral pedagogo e divulgador da ciência?

O livro de Brooks é um lúcido, esclarecedor e científico contraponto para as "provocações" filosóficas de Feyerabend que foi ao extremo de afirmar que a bruxaria é um meio tão válido como a ciência para obter conhecimento e, também, que em ciência "vale tudo". Todavia, Brooks não é meigo para a ciência oficial (política científica?) dizendo que ela veste os investigadores com demasiados "coletes de força" que atravancam o caminho da boa ciência, e defendendo:

The work of science is too precious, and - in this age of approaching environmental crisis - too urgent, to allow that to happen. But safe in the knowledge that the public can cope with truly human scientists, and empowered by the realisation that people no longer fear science, we can set scientists free to work in the way that gives them their best chance of making progress.

Curiosamente, Michael Brooks liderou, nas eleições britânicas de 2010, o "Partido da Ciência", disputando o lugar do deputado conservador David Tredinnick, um simpatizante da anti-ciência e das medicinas alternativas que gastou 700 libras do erário público em software astrológico (após denúncia pública em 2009 teve de reembolsar o Estado). Brooks, perdeu a eleição: teve 197 votos contra os 23132 de Tredinnick. Isto, na secular democracia britânica. Deu-me para imaginar o que sucederia, em Portugal, numa situação semelhante...


Referências
[1] Michael Brooks, "Free Radicals. The Secret Anarchy of Science", Profile Books, 2011.
[3] Carlos Fiolhais, "Um Filósofo sem Razão", De Rerum Natura, 2007.
[4] Alan Sokal, Jean Bricmont, "Imposturas Intelectuais", Gradiva, 1999.
[5] Frederico di Trocchio, "O Génio Incompreendido", Dinalivro, 2002.
[6] Euan Squires, "Conscious Mind in the Physical World", Adam Hilger, 1990.