sábado, 25 de janeiro de 2014

Ojectividade da Ciência versus Realidade Objectiva

"Objectos e fenómenos físicos são independentes de preconceitos e opções pessoais, devendo as observações e as previsões de teorias científicas ter um adequado suporte experimental e/ou lógico-matemático, e os resultados divulgados publicamente com vista à sua ampla confirmação ou refutação". Esta é a linha mestra do que entendemos por objectividade da ciência. Por sua vez, a ciência é um corpo de conhecimentos - obtidos por métodos e instrumentos específicos - fonte de aplicações tecnológicas e de formas de pensamento e de acção, desafiando permanentemente ideias estabelecidas. Como produto da actividade intelectual humana é, obviamente, uma das componentes da Cultura. Do exposto, depreende-se facilmente o que, em ciência, se compreende por subjectividade, a qual, em última instância, se requer erradicada de qualquer actividade científica. No entanto, nada disto é incompatível com a intuição e a emoção de cada um dos cientistas, factores psicológicos de crucial importância para o progresso científico. Destes, trataremos numa outra nota.
O conceito de objectividade da ciência é confundido frequentemente com o de realidade objectiva. No âmbito da ciência, esta questão radica-se essencialmente na mecânica quântica que foi desenvolvida a partir do início do século XX. Tentaremos mostrar que a objectividade da ciência não é quebrada mesmo que a realidade objectiva o possa ser num certo sentido.
Atire-se uma moeda ao ar. Caí de cara ou de coroa? É imprevisível, é um processo aleatório, ao acaso, diz-se, só saberemos o resultado após o evento. Todavia, a moeda segue uma trajectória determinista regulada pelas leis de Newton (ver a nota: "Acaso, Caos e Irreversibilidade. Jogo de Cara ou Coroa?"). Na ausência do conhecimento exacto das condições iniciais da moeda (posição, força de impulso, resistência do ar, etc.) recorre-se ao conceito de probabilidade: se a moeda não for viciada, a probabilidade de cair de cara ou de coroa é 1/2 (2 possibilidades para 1 observação). Mas... se tivéssemos o conhecimento exacto das condições iniciais da moeda saberíamos exacta e antecipadamente o resultado porque, como já referido, o movimento da moeda é regulado pelas equações deterministas de Newton. A observação do resultado seria, então, apenas a constatação do que já sabíamos a priori. Ou seja, a "propriedade" cara ou coroa (resultado final) fica desde logo exactamente determinada no inicio do lançamento. De qualquer modo, acreditamos que existe uma realidade que "flui lá fora" independente do observador, em que os atributos dos objectos estão sempre "impressos" neles, quer olhemos para eles ou não. É a esta realidade que a ciência chama realidade objectiva. De forma poética: "full many a flower is born unseen, and waste its sweetness on the desert air" [1]. Alguém duvida?
O facto de se atribuírem probabilidades é tão-somente um recurso operacional porque não sabemos exactamente as condições iniciais da moeda, de contrário, o valor da probabilidade não seria necessário para o eventual conhecedor dessas condições e das leis de Newton. Ganharia sempre ao ignorante!... São, afinal, probabilidades não-intrinsecas ao processo, as quais se designam probabilidades estatísticas.
Suponhamos, agora, que as dimensões macroscópicas da moeda se reduzem a dimensões microscópicas. Nesse caso, entra em cena a mecânica quântica que, na sua formulação ortodoxa, afirma: "não é possível, em qualquer circunstância, mesmo ideal, conhecer exactamente as condições iniciais da moeda, mas apenas as probabilidades dos resultados possíveis. Somente após uma observação, se pode conhecer, efectivamente, qual é o resultado". E quais são, afinal, as possibilidades? Aqui surge o inesperado, o aparentemente paradoxal para quem, como nós, vive num ambiente macroscópico. Ei-las: cara, coroa e, também, uma sobreposição coerente de cara e coroa (esta, análoga ao famoso gato de Schrodinger: morto e vivo simultaneamente até que uma observação decida o seu estado!). Mas não pode definir-se o estado inicial? Pode ser definido, mas numa formulação diferente do caso de situações macroscópicas (também chamadas clássicas): a sua forma matemática tem logo incluídas probabilidades intrínsecas, designadas probabilidades quânticas. Contudo, as equações quânticas que regulam a evolução temporal da "moeda quântica" são deterministas! Ou seja, conhecido o estado quântico inicial pode prever-se exactamente qual o estado em qualquer instante posterior, mas, sublinhe-se, são equações deterministas para a evolução temporal de probabilidades intrínsecas, não para as "propriedades físicas" cara ou coroa que apenas podem conhecer-se após uma observação. Em suma, o determinismo também está presente na mecânica quântica.
Não existem propriamente "moedas quânticas", mas são bem conhecidas outras entidades físicas, formalmente análogas à moeda imaginária, que apresentam comportamentos quânticos típicos. Por exemplo: o electrão que tem as propriedades spin up ou spin down, o fotão que pode apresentar polarização vertical ou polarização horizontal, etc. Para todos eles, as previsões da mecânica quântica são rigorosa e experimentalmente verificadas, inclusivé as referidas sobreposições coerentes, os tais "gatinhos de Schrodinger". Porque não se verificam, então, essas sobreposições coerentes (também chamadas interferências) no nosso ambiente macroscópico? Pois bem, a teoria da decoerência (uma especialidade da mecânica quântica) mostra que, na grande maioria dos sistemas macroscópicos, bastam as perturbações exteriores (inclusivé as provocadas pelas observações pessoais) para eliminar, quase instantaneamente, tais sobreposições ou interferências. Como consequência, as probabilidades quânticas surgem semelhantes às probabilidades estatísticas, manifestando-se como as quase-certezas da mecânica de Newton. A figura seguinte (adaptada da referência [2]) ilustra a ideia para a moeda macroscópica. Note-se que a descrição quântica inclui a possibilidade das sobreposições coerentes.


Finalmente, a questão tão apreciada, especialmente pelos filósofos: se o universo é essencialmente regulado por leis quânticas que nos indicam o papel indispensável do observador (um sujeito) para decidir qual é, efectivamente, o resultado de qualquer medição, conclui-se que estamos perante uma "realidade subjectiva", numa "crise de objectividade da ciência" porque, afinal, a realidade "é criada pelo observador", não existindo o "fluir lá fora" independente do observador. Tal conclusão, se interpretada "à letra", torna-se abusiva. De facto, se diferentes grupos de investigadores em diversas partes do mundo realizarem experiências em sistemas quânticos semelhantes, obterão precisamente os mesmos resultados. Logo, de acordo com a linha mestra referida acima, a objectividade da ciência não é, de modo algum, quebrada. Como corolário, embora não exista uma realidade objectiva no estrito sentido clássico, é indubitável que existe uma realidade empírica (não subjectiva, sublinhe-se) que "flui lá fora" de acordo com as equações quânticas deterministas.

Referências

[1] E. Squires, "The Mystery of the Quantum World", 2nd edition, Institute of Physics Publishing, Bristol, 1994.
[2] M. Tegmark, J.A. Wheeler, "100 Years of Quantum Mysteries", Scientific American, pags. 72-79, Februray, 2001.
[3] J. Baggott, "Beyond Measure. Modern Physics, Philosophy and the Meaning of Quantum Theory", Oxforfd University Press, 2004.
[4] L. Alcácer, "Introdução à Química Quântica Computacional", IST Press, Lisboa, 2007.
[5] F. Fernandes, "On decoherence theory", Centro de Ciências Moleculares e Materiais, 2012.