quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Foi Václav Havel Anti-Ciência?

Václav Havel (1936-2011), reputado estadista e dramaturgo checo, publicou alguns ensaios sobre ciência e tecnologia que merecem especial reflexão por serem controversos e pela considerável influência que tiveram, particularmente nos EUA, tanto mais vindos de uma personalidade da craveira de Havel. Diga-se, antes de mais, que Havel não era propriamente um leigo em ciência pois, na sua juventude, trabalhou como técnico de laboratório químico. Leia-se, então, um excerto do artigo publicado no "The New York Times", 1992, intitulado "O Fim da Era Moderna" [1]:
"[...] o fim do comunismo [...] trouxe um fim não só aos séculos XIX e XX, mas também à idade moderna como um todo. A era moderna tem sido dominada pela crença maior, expressa de diferentes formas, de que o mundo – e o Ser como tal – é um sistema completamente cognoscível governado por um número finito de leis universais que o homem pode aprender e orientar racionalmente para seu próprio bem. Esta era, que começou na Renascença e se desenvolveu do Iluminismo ao socialismo, do positivismo ao cientismo, da revolução industrial à revolução na informação, foi caracterizada por rápidos progressos no conhecimento racional, cognitivo. Isto, por sua vez, deu origem à orgulhosa crença de que o homem, situado no topo de tudo o que existe, era capaz de, objectivamente, descrever, explicar e controlar tudo o que existe, de possuir a única verdade sobre o mundo. Foi uma era em que reinou o culto da objectividade despersonalizada, uma era em que se amontoou e explorou tecnologicamente o conhecimento objectivo, uma era de sistemas, instituições, mecanismos e médias estatísticas. Foi uma era de livre circulação de informação não existencialmente justificada. Foi uma era de ideologias, doutrinas e interpretações da realidade, uma era em que o objectivo foi encontrar uma teoria universal do mundo e, assim, uma chave universal para lhe abrir as portas da prosperidade. O comunismo foi o extremo perverso desta tendência […]. A queda do comunismo pode ser encarada como um sinal de que o pensamento moderno – baseado na premissa de que o mundo é objectivamente cognoscível e de que o conhecimento assim obtido pode ser absolutamente generalizado – chegou à crise final. Esta era criou a primeira civilização tecnológica global, ou planetária, mas atingiu o limite das suas potencialidades, o ponto para além do qual o abismo começa. [...] A ciência tradicional, com a sua costumada frieza, pode descrever as diferentes vias passíveis de levar à nossa autodestruição, mas não nos pode oferecer instruções verdadeiramente efectivas e praticáveis para nos afastar dessas vias".
Havel caracteriza, de certo modo, a era moderna, embora com afirmações, a nosso ver, injustificadas. De facto, a maioria da comunidade científica não tem a crença de que o mundo e os seres sejam completamente cognoscíveis e governado por um número finito de leis universais, nem advoga o “cientismo” (o que Havel parece sugerir). Recorde-se que “cientismo” (ou cienticismo) é a perspectiva de que a ciência é o melhor modo de pensamento e actividade para conduzir à verdade e felicidade supremas. Por outro lado, tanto o comunismo como o capitalismo são fundamentados numa visão mecânica do mundo (ou paradigma newtoniano), essencialmente materialista, contribuindo ambos (apesar dos seus diferentes modelos económico e sociais e acções políticas) para a actual civilização tecnológica, como referimos numa nota anterior ("Crise Energética, Leis da Termodinâmica e a 3ª Revolução Industrial"). Relativamente à conexão entre o comunismo e a ciência moderna, sugerindo Havel o fim desta com a queda do comunismo, é interessante referir algumas palavras do americano Loren R. Graham, especialista em história e filosofia da ciência soviética [2]:
"Terá sido a formação dada ao maior batalhão de engenheiros que o mundo jamais viu – gente que viria a dominar toda a burocracia soviética – em moldes tais que esses engenheiros não sabiam praticamente nada da economia e política modernas, um triunfo da ciência? E mesmo muito depois da morte de Stalin, já nos anos 80, o que era a insistência soviética em manter unidades agrícolas estatais ineficientes e gigantescas fábricas estatais se não uma expressão do dogmatismo obstinado que se esfumou em face de uma montanha de dados empíricos?".
E sobre a "base científica" da decisão de Mao Tse-Tung, "o Grande Timoneiro Chinês", no que respeita à matança dos pássaros por comerem os cereais? Por outro lado, o que dizer de algumas formas de capitalismo, também com fundamento científico, que nos assaltam em nome de concepções ambíguas, como "o mercado" e "as agências de rating", que vão hipotecando o futuro das gerações futuras? Será um triunfo da ciência?
Por último, surge uma aparente confusão entre ciência e tecnologia e, também, com o significado de objectividade da ciência. A ciência, em si mesma, não é maniqueísta, mas apenas uma componente da Cultura, um dos meios de adquirir conhecimento, ajustando os seus modelos e teorias de acordo com a lógica de raciocínio e a experimentação, e obedecendo ao seu critério-guia de objectividade. E, sublinhe-se, aliando sempre ao racional a intuição e a emoção. Ao contrário de algumas tecnologias e indústrias (filhas directas da ciência, certamente) que podem ser fortemente dependentes de políticas e respectivos pressupostos ideológicos, e ter consequências nefastas para a humanidade. Mas, afinal, não nos oferecem (ver uma nota anterior "Entropia e Probabilidade") a ciência e algumas tecnologias actuais "instruções verdadeiramente efectivas e praticáveis para nos afastar dessas vias" da auto-destruição clamada por Havel? Parece-nos que sim, e cada vez mais, à medida que a crise entrópico-energética se agrava. Podem designar-se essas contribuições como representantes duma "ciência pós-moderna"? Se sim, quais são os métodos, modelos, teorias e interpretações científicas que a distinguem da chamada "ciência moderna"?
A ciência moderna foi também abordada por Havel noutro ensaio de 1984, "Politics and Conscience" [3], do qual se seleciona o excerto seguinte:
"[...] é uma época que nega a importância irrecusável da experiência pessoal – incluindo a experiência do mistério e do absoluto – e substitui o absoluto vivenciado pessoalmente como medida do mundo por um absoluto, forjado pelo homem, despido de mistério, livre dos «caprichos» da subjectividade e, como tal, impessoal e desumano. É o absoluto da chamada objectividade: a cognição objectiva e racional do modelo científico do mundo. A ciência moderna, ao construir a sua imagem universalmente válida do mundo rompe as barreiras do mundo natural, do qual só pode ter a imagem de uma prisão feita de preconceitos da qual devemos sair para ter acesso à luz da verdade objectivamente verificada […]. Deste modo, é claro, procede à abolição, como mera ficção, até do mais íntimo fundamento do nosso mundo natural. Mata Deus e ocupa o seu lugar no trono deixado vazio, de modo que, daí em diante, seria a ciência a deter a ordem dos seres nas suas mãos como a sua única legítima guardiã, tal como seria o único árbitro legítimo de todas as verdades relevantes. Pois, no fim de contas, apenas a ciência se eleva acima de todas as verdades subjectivas individuais e as substitui por uma verdade superior, transubjectiva e transpessoal, que é verdadeiramente objectiva e universal. O racionalismo moderno e a ciência moderna, através do trabalho do homem, que, como qualquer trabalho humano se desenvolve no interior do nosso mundo natural, põe-o agora sistematicamente de parte, nega-o, degrada-o e difama-o – e, claro, ao mesmo tempo coloniza-o".
Em resumo, parece que ciência moderna contém, desde o início, os germes fatais da sua própria ruína, sendo até "acusada" de deicídio. Quanto a este, é por certo uma metáfora de dramaturgo, mas...se lida "à letra"!… Curiosamente, a metáfora tem raízes seculares. Quando Pierre de Laplace (1749-1827), físico, matemático e astrónomo francês, apresentou a sua magistral obra "Mécanique Céleste", Napoleão disse-lhe: "Senhor Laplace, dizem-me que escreveu este longo livro acerca do sistema do universo e nem sequer mencionou o seu Criador", ao que Laplace respondeu: "Não tive necessidade dessa hipótese"No entanto, pouco antes de falecer, Laplace disse: "O que sabemos é insignificante; o que não sabemos é imenso".
Os ensaios de Havel sobre ciência e tecnologia tiveram reacções, por vezes agrestes, e algumas consequências, em particular nos EUA. Uma das consequências é relatada e documentada pelo físico americano, e historiador da ciência, Gerald Holton [4]. Resumidamente, George E. Brown Jr. foi presidente do Comité do Congresso dos EUA para a Ciência, Espaço e Tecnologia, e um dos mais resolutos e eficazes advogados da ciência até que, em 1992, leu o referido ensaio de Havel “O Fim da Era Moderna”. Inspirado por ele, começou por escrever um longo artigo introspectivo sob o título "A Crise da Objectividade" no American Journal of Physics. Concluiu que a sua resposta, à questão de saber se a ciência pode partilhar um lugar no centro da cultura moderna, era claramente um não. Quando Brown apresentou as suas ideias a um grupo de especialistas em ciências sociais, durante o encontro anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência, apenas um discordou abertamente. Outro dos especialistas, sugeriu que para apreciar propostas de financiamento à investigação científica, o governo federal deveria criar uma variante da Fundação Nacional para a Ciência, entre cujos membros se deveriam incluir não-especialistas tais como um "sem abrigo" e um elemento dum "gang urbano". Contudo, em 1994, Brown distanciou-se destes caminhos, porventura sensibilizado por alguns cientistas, num artigo da revista Physics Today, intitulado "New Ways of Looking at U.S. Science and Technology". Mas, o novo Congresso, eleito em 1994, reduziu substancialmente o apoio que a ciência recebera desde a 2ª guerra mundial, e um dos influentes congressistas da nova maioria advogou que os fundos para a recolha de dados científicos deviam ser eliminados, porque esse tipo de informação levava, frequentemente, o Congresso a adoptar regulamentos, como os que visam a protecção do ambiente ou dos locais de trabalho, que podiam colidir com alguns interesses.
Alguns autores, por exemplo Holton [4],  classificam o pensamento de Václav Havel, sobre ciência e tecnologia, como representante do romantismo ou do pós-modernismo ou da anti-ciência, ou duma simbiose de todos esses movimentos. Quanto a nós, Havel foi, afinal, um intelectual ("não é intelectual quem quer, mas quem é" [5]...) que fez incursões nessas vertentes culturais. Compreende-se o seu antagonismo em relação ao comunismo e a sua vincada preocupação sobre o que julgamos ser, mais propriamente, alguma tecnologia-indústria do que sobre a ciência em si mesma, embora discordemos de muitas das suas afirmações. Não o consideramos, no entanto, um arauto da anti-ciência, pois quem leia atentamente os seus ensaios concluirá que foi um humanista com profundas, e fundamentadas, preocupações ecológicas que acabou por defender a ciência! Uma passagem retirada do seu ensaio "Politics and Conscience", não incluída no excerto anterior, é ilustrativa:
"A modern man, whose natural work has been properly conquered by science and technology, objects to the smoke from the smokestack only if the stench penetrates his apartment. In no case, though, does he take offence at it metaphysically, since he knows that the factory to which the smokestack belongs manufactures things that he needs. As a man of the technological era, he can conceive of a remedy only within the limits of technology – say, a catalytic scrubber fitted to the chimney. Lest you misunderstand: I am not proposing that humans abolish smokestacks or prohibit science or generally return to the Middle Ages. Besides, it is not by accident that some of the most profound discoveries of modern science render the myth of objectivity surprisingly problematic and, via a remarkable detour, return us to the human subject and his world. I wish no more than to consider, in a most generally and admittedly schematic outline, the spiritual framework of modern civilization and the source of its present crisis […]. The fault is not one of science as such but of the arrogance of man in the age of science. Man simply is not God, and playing God has cruel consequences".
Será que Havel não devia ter-se "atrevido" a discorrer sobre ciência uma vez que não era um cientista? Parece-nos que uma resposta adequada é citar o físico Erwin Schrödinger, um dos pais da mecânica quântica, quando se "atreveu" a opinar, em 1944, sobre a vida e a genética (áreas fora da sua especialidade) no célebre clássico "What is Life?" [6]:
"...we are only now beginning to acquire reliable material for welding together the sum total of all that is known into a whole; but, on the other hand, it has become next to impossible for a single mind fully to command more than a small specialised part of it. I can see no escape from this dilemma than that some of us should venture to embark on a synthesis of facts and theories, albeit with second-hand and incomplete knowledge of some of them – and at the risk of making fools of ourselves”.
Pois bem, Francis Crick, um dos premiados Nobel da Fisiologia e Medicina em 1962, pela descoberta da estrutura do ADN, admitiu ter sido "strongly influenced by (although not in complete agreement with) the broad-ranging ideas put forward here by this highly original and profoundly thoughtful scientist".
O pensamento de Havel teve consequências e discordâncias que devem ser meditadas, transmitidas e discutidas, mas lendo na íntegra os seus ensaios. Não apenas retirando alguns excertos com o intuito de justificar atitudes radicais de anti-ciência e de pós-modernismo, ou para classificar Havel como um dos seus defensores. Tal parece ter sido o caso, entre outros, de George Brown. Quanto ao influente congressista de 1994, ficou certamente incomodado com as preocupações ecológicas de Havel...

Referências

[1] Václav Havel, "The End of Modern Era", 1992.
[2]  L.R. Graham, "The Gost of the Executed Engineer: Technology and the Fall of the Soviet Union", Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1993.
[3] Václav Havel,  "Politics and Conscience", 1984.
[4] G. Holton, “A Cultura Científica e os seus Inimigos”, Gradiva, 1998.
[5] Romeu de Melo, "Os Intelectuais e a Política", Editorial Presença, 1964.
[6] E. Schrödinger, "What is Life", Cambridge University Press, 1992.