Václav Havel (1936-2011), reputado estadista e dramaturgo checo, publicou alguns ensaios sobre ciência e tecnologia que merecem especial reflexão por serem controversos e pela considerável influência que tiveram, particularmente nos EUA, tanto mais vindos de uma personalidade da craveira de Havel. Diga-se, antes de mais, que Havel não era propriamente um leigo em ciência pois, na sua juventude, trabalhou como técnico de laboratório químico. Leia-se, então, um excerto do artigo publicado no "The New York Times", 1992, intitulado "O Fim da Era Moderna" [1]:
"[...] o fim do comunismo [...] trouxe um fim não só aos
séculos XIX e XX, mas também à idade moderna como um todo. A era moderna tem sido dominada pela crença maior, expressa de diferentes
formas, de que o mundo – e o Ser como tal – é um sistema completamente
cognoscível governado por um número finito de leis universais que o homem pode
aprender e orientar racionalmente para seu próprio bem. Esta era, que começou
na Renascença e se desenvolveu do Iluminismo ao socialismo, do positivismo ao
cientismo, da revolução industrial à revolução na informação, foi caracterizada
por rápidos progressos no conhecimento racional, cognitivo. Isto, por sua vez,
deu origem à orgulhosa crença de que o homem, situado no topo de tudo o que
existe, era capaz de, objectivamente, descrever, explicar e controlar tudo o
que existe, de possuir a única verdade sobre o mundo. Foi uma era em que reinou
o culto da objectividade despersonalizada, uma era em que se amontoou e
explorou tecnologicamente o conhecimento objectivo, uma era de sistemas,
instituições, mecanismos e médias estatísticas. Foi uma era de livre circulação
de informação não existencialmente justificada. Foi uma era de ideologias,
doutrinas e interpretações da realidade, uma era em que o objectivo foi
encontrar uma teoria universal do mundo e, assim, uma chave universal para lhe
abrir as portas da prosperidade. O comunismo foi o extremo perverso desta tendência […]. A queda do comunismo pode ser encarada
como um sinal de que o pensamento moderno – baseado na premissa de que o mundo
é objectivamente cognoscível e de que o conhecimento assim obtido pode ser
absolutamente generalizado – chegou à crise final. Esta era criou a primeira
civilização tecnológica global, ou planetária, mas atingiu o limite das suas
potencialidades, o ponto para além do qual o abismo começa. [...] A ciência tradicional, com a sua costumada frieza, pode descrever
as diferentes vias passíveis de levar à nossa autodestruição, mas não nos pode
oferecer instruções verdadeiramente efectivas e praticáveis para nos afastar
dessas vias".
Havel caracteriza, de certo modo, a era moderna, embora com afirmações, a nosso ver, injustificadas. De facto, a maioria
da comunidade científica não tem a crença de que o mundo e os seres sejam
completamente cognoscíveis e governado por um número finito de leis universais, nem advoga o “cientismo” (o
que Havel parece sugerir). Recorde-se que “cientismo” (ou cienticismo) é a perspectiva de que a ciência é o melhor modo de
pensamento e actividade para conduzir à verdade e felicidade supremas. Por outro lado, tanto o comunismo como o capitalismo são fundamentados numa visão
mecânica do mundo (ou paradigma newtoniano),
essencialmente materialista, contribuindo ambos (apesar dos seus diferentes
modelos económico e sociais e acções políticas) para a actual civilização
tecnológica, como referimos numa nota anterior ("Crise Energética, Leis da Termodinâmica e a 3ª Revolução Industrial"). Relativamente à conexão entre o comunismo e a ciência moderna,
sugerindo Havel o fim desta com a queda do comunismo, é interessante referir
algumas palavras do americano Loren R. Graham, especialista em história e
filosofia da ciência soviética [2]:
"Terá sido a formação dada ao maior batalhão de engenheiros que o mundo
jamais viu – gente que viria a dominar toda a burocracia soviética – em moldes
tais que esses engenheiros não sabiam praticamente nada da economia e política
modernas, um triunfo da ciência? E mesmo muito depois da morte de Stalin, já nos anos 80, o que era a
insistência soviética em manter unidades agrícolas estatais ineficientes e
gigantescas fábricas estatais se não uma expressão do dogmatismo obstinado que
se esfumou em face de uma montanha de dados empíricos?".
E sobre a "base científica" da decisão de Mao Tse-Tung, "o Grande Timoneiro
Chinês", no que respeita à matança dos pássaros por comerem os cereais? Por outro lado, o que dizer de algumas formas de capitalismo, também com fundamento
científico, que nos assaltam em nome de concepções ambíguas, como "o mercado" e "as agências de rating", que vão hipotecando o futuro das gerações futuras?
Será um triunfo da ciência?
Por último, surge uma aparente confusão entre ciência e tecnologia e,
também, com o significado de objectividade da ciência. A ciência, em si mesma, não
é maniqueísta, mas apenas uma componente da Cultura, um dos meios de
adquirir conhecimento, ajustando os seus modelos e teorias de acordo com a
lógica de raciocínio e a experimentação, e obedecendo ao seu critério-guia de
objectividade. E, sublinhe-se, aliando sempre ao racional a intuição e a
emoção. Ao contrário de algumas tecnologias e indústrias (filhas directas da ciência, certamente) que podem ser fortemente dependentes de
políticas e respectivos pressupostos ideológicos, e ter consequências nefastas
para a humanidade. Mas, afinal, não nos oferecem (ver uma nota anterior "Entropia e Probabilidade") a ciência e algumas tecnologias actuais "instruções
verdadeiramente efectivas e praticáveis para nos afastar dessas vias" da
auto-destruição clamada por Havel? Parece-nos que sim, e cada vez mais, à medida
que a crise entrópico-energética se agrava. Podem designar-se essas contribuições como representantes duma "ciência
pós-moderna"? Se sim, quais são os métodos, modelos, teorias e interpretações
científicas que a distinguem da chamada "ciência moderna"?
A ciência moderna foi também abordada por Havel noutro ensaio de 1984, "Politics
and Conscience" [3], do qual
se seleciona o excerto seguinte:
"[...] é uma época que nega a importância irrecusável da experiência
pessoal – incluindo a experiência do mistério e do absoluto – e substitui o
absoluto vivenciado pessoalmente como medida do mundo por um absoluto, forjado
pelo homem, despido de mistério, livre dos «caprichos» da subjectividade e,
como tal, impessoal e desumano. É o absoluto da chamada objectividade: a
cognição objectiva e racional do modelo científico do mundo. A ciência moderna, ao construir a sua imagem universalmente válida do mundo
rompe as barreiras do mundo natural, do qual só pode ter a imagem de uma prisão
feita de preconceitos da qual devemos sair para ter acesso à luz da verdade
objectivamente verificada […]. Deste modo, é claro, procede à abolição, como
mera ficção, até do mais íntimo fundamento do nosso mundo natural. Mata Deus e
ocupa o seu lugar no trono deixado vazio, de modo que, daí em diante, seria a
ciência a deter a ordem dos seres nas suas mãos como a sua única legítima
guardiã, tal como seria o único árbitro legítimo de todas as verdades
relevantes. Pois, no fim de contas, apenas a ciência se eleva acima de todas as
verdades subjectivas individuais e as substitui por uma verdade superior,
transubjectiva e transpessoal, que é verdadeiramente objectiva e universal. O racionalismo moderno e a ciência moderna, através do trabalho do homem,
que, como qualquer trabalho humano se desenvolve no interior do nosso mundo
natural, põe-o agora sistematicamente de parte, nega-o, degrada-o e difama-o –
e, claro, ao mesmo tempo coloniza-o".
Em resumo, parece que ciência moderna contém, desde o início, os germes
fatais da sua própria ruína, sendo até "acusada" de deicídio. Quanto a este, é por certo uma metáfora de dramaturgo, mas...se lida "à letra"!… Curiosamente, a metáfora tem raízes seculares. Quando Pierre de Laplace
(1749-1827), físico, matemático e astrónomo francês, apresentou a sua magistral
obra "Mécanique Céleste", Napoleão disse-lhe: "Senhor Laplace, dizem-me que escreveu este longo livro acerca do
sistema do universo e nem sequer mencionou o seu Criador", ao que Laplace
respondeu: "Não tive necessidade dessa hipótese". No entanto, pouco antes de falecer, Laplace disse: "O que sabemos é
insignificante; o que não sabemos é imenso".
Os ensaios de Havel sobre ciência e tecnologia tiveram reacções, por vezes
agrestes, e algumas consequências, em particular nos EUA. Uma das consequências
é relatada e documentada pelo físico americano, e historiador da ciência,
Gerald Holton [4]. Resumidamente, George E. Brown Jr. foi presidente do Comité do Congresso
dos EUA para a Ciência, Espaço e Tecnologia, e um dos mais resolutos e eficazes
advogados da ciência até que, em 1992, leu o referido ensaio de Havel “O Fim da Era
Moderna”. Inspirado por ele, começou por escrever um longo artigo introspectivo
sob o título "A Crise da Objectividade" no American Journal of
Physics. Concluiu que a sua resposta, à questão de saber se a ciência pode
partilhar um lugar no centro da cultura moderna, era claramente um não. Quando Brown apresentou as suas ideias a um grupo de especialistas em
ciências sociais, durante o encontro anual da Associação Americana para o
Avanço da Ciência, apenas um discordou abertamente. Outro dos especialistas,
sugeriu que para apreciar propostas de financiamento à investigação científica,
o governo federal deveria criar uma variante da Fundação Nacional para a
Ciência, entre cujos membros se deveriam incluir não-especialistas tais como um "sem abrigo" e um elemento dum "gang urbano". Contudo, em 1994, Brown distanciou-se destes caminhos, porventura
sensibilizado por alguns cientistas, num artigo da revista Physics Today,
intitulado "New Ways of Looking at U.S. Science and Technology". Mas, o
novo Congresso, eleito em 1994, reduziu substancialmente o apoio que a ciência
recebera desde a 2ª guerra mundial, e um dos influentes congressistas da nova
maioria advogou que os fundos para a recolha de dados científicos deviam ser
eliminados, porque esse tipo de informação levava, frequentemente, o Congresso
a adoptar regulamentos, como os que visam a protecção do ambiente ou dos locais
de trabalho, que podiam colidir com alguns interesses.
Alguns autores, por exemplo Holton [4], classificam o pensamento de Václav Havel, sobre ciência e
tecnologia, como representante do romantismo ou do pós-modernismo ou da
anti-ciência, ou duma simbiose de todos esses movimentos. Quanto a nós, Havel foi, afinal, um intelectual ("não é intelectual quem quer, mas quem é" [5]...) que fez incursões nessas vertentes
culturais. Compreende-se o seu antagonismo em relação ao comunismo e a sua vincada
preocupação sobre o que julgamos ser, mais propriamente, alguma
tecnologia-indústria do que sobre a ciência em si mesma, embora discordemos de muitas das suas afirmações. Não o consideramos, no entanto, um arauto da anti-ciência, pois quem leia
atentamente os seus ensaios concluirá que foi um humanista com profundas, e
fundamentadas, preocupações ecológicas que acabou por defender a
ciência! Uma passagem retirada do seu ensaio "Politics and Conscience", não incluída no excerto anterior, é ilustrativa:
"A modern
man, whose natural work has been properly conquered by science and technology,
objects to the smoke from the smokestack only if the stench penetrates his
apartment. In no case, though, does he take offence at it metaphysically, since
he knows that the factory to which the smokestack belongs manufactures things
that he needs. As a man of the technological era, he can conceive of a remedy
only within the limits of technology – say, a catalytic scrubber fitted to the
chimney. Lest you
misunderstand: I am not proposing that humans abolish smokestacks or prohibit
science or generally return to the Middle Ages. Besides, it is not by accident
that some of the most profound discoveries of modern science render the myth of
objectivity surprisingly problematic and, via a remarkable detour, return us to
the human subject and his world. I wish no more than to consider, in a most
generally and admittedly schematic outline, the spiritual framework of modern
civilization and the source of its present crisis […]. The fault is
not one of science as such but of the arrogance of man in the age of science.
Man simply is not God, and playing God has cruel consequences".
Será que Havel não devia ter-se "atrevido" a discorrer sobre ciência uma
vez que não era um cientista? Parece-nos que uma resposta adequada é citar o
físico Erwin Schrödinger, um dos pais da mecânica quântica, quando se "atreveu" a opinar, em 1944, sobre a vida e a genética (áreas fora da sua especialidade)
no célebre clássico "What is Life?" [6]:
"...we are
only now beginning to acquire reliable material for welding together the sum
total of all that is known into a whole; but, on the other hand, it has become
next to impossible for a single mind fully to command more than a small
specialised part of it. I can see no escape from this dilemma than that some of
us should venture to embark on a synthesis of facts and theories, albeit with
second-hand and incomplete knowledge of some of them – and at the risk of
making fools of ourselves”.
Pois bem,
Francis Crick, um dos premiados Nobel da Fisiologia e Medicina em 1962, pela
descoberta da estrutura do ADN, admitiu ter sido "strongly influenced by
(although not in complete agreement with) the broad-ranging ideas put forward
here by this highly original and profoundly thoughtful scientist".
O pensamento de Havel teve consequências e discordâncias que devem ser
meditadas, transmitidas e discutidas, mas lendo na íntegra os seus
ensaios. Não apenas retirando alguns excertos com o intuito de justificar
atitudes radicais de anti-ciência e de pós-modernismo, ou para classificar Havel
como um dos seus defensores. Tal parece ter sido o caso, entre outros, de
George Brown. Quanto ao influente congressista de 1994, ficou certamente incomodado com as preocupações ecológicas de Havel...
Referências
[1] Václav Havel, "The End of Modern Era", 1992.
[2] L.R. Graham, "The Gost of the Executed Engineer: Technology and the Fall of the Soviet Union", Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1993.
[3] Václav Havel, "Politics and Conscience", 1984.
[4] G. Holton, “A Cultura Científica e os seus Inimigos”, Gradiva, 1998.
[5] Romeu de Melo, "Os Intelectuais e a Política", Editorial Presença, 1964.
[6] E. Schrödinger, "What is Life", Cambridge University Press, 1992.