terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Acaso, Caos e Irreversibilidade. Jogo de cara ou coroa?

Henri Poincaré (1854-1916), matemático, físico e filósofo francês, escreveu em "A Ciência e Método": "Uma causa muito pequena, de que não nos apercebemos, determina um efeito considerável que nós não podemos deixar de ver, e então dizemos que esse efeito é devido ao acaso", citado em [1].
Esta afirmação capta bem a nossa sensação do "aleatório", da "imprevisibilidade", do "azar nos jogos", em suma, do "acaso" que parece perspassar a evolução temporal dos sistemas. Não tendo certezas, atribuímos probabilidades às nossas expectativas, tentando satisfazer o irresistível desejo de prever o futuro ou de ganhar a lotaria.
Mas tudo será aleatório, ao acaso? Não ensinou Newton, com as suas equações matemáticas, a prever, com espetacular precisão, o movimento dos astros, os eclipses e o aparecimento de cometas? Não desceu o homem na Lua orientado pela mecânica de Newton?
Examine-se a figura seguinte. Os círculos representam bolas numa mesa de bilhar e as linhas com setas as trajectórias, ao longo do tempo, de duas bolas adicionais. Repare-se nas trajectórias muito próximas, quase indistinguíveis, no canto inferior esquerdo. Representam as trajectórias iniciais das ditas bolas adicionais que vão colidir com as que já estão na mesa. Sigam-se essas trajectórias. É óbvio que, ao fim dum certo número de colisões, os caminhos das duas bolas nada têm a ver um com o outro. Contudo, se soubermos exactamente as condições iniciais das duas bolas, as equações deterministas de Newton prevêem exactamente cada uma das trajectórias.


E se aquelas trajectórias, quase indistinguíveis, representarem a incerteza do nosso conhecimento sobre a condição inicial duma única bola? Nesse caso, a despeito do movimento da bola ser exatamente determinado pelas equações de Newton, não saberemos qual será a sua trajectória, é imprevisível! Eis o que se entende por caos determinístico (ou simplesmente, "caos") : sistemas dinâmicos que apresentam comportamentos aparentemente aleatórios, produzidos por um mecanismo essencialmente determinista e consequentes de condições iniciais que difiram por pequeníssimos valores. Nos fenómenos caóticos, a ordem determinista cria a desordem do acaso, via o que se designa sensibilidade às condições iniciais (traduzida na metáfora "efeito borboleta": o bater de asas de uma borboleta talvez possa provocar um ciclone no outro lado do mundo).
Nem todos os sistemas apresentam comportamento caótico: o sistema sol-planetas-cometas, por exemplo, tem geralmente um comportamento bem previsível a longo prazo. O mesmo não se passa no âmbito da meteorologia: uma previsão do clima apenas é segura, em geral, dentro de uma a duas semanas, embora o mecanismo climático seja regulado por equações deterministas. E nos sistemas atómico-moleculares o caos está sempre presente, a despeito dos movimentos das moléculas serem regulados, também, pelas equações deterministas de Newton e da mecânica quântica. 
Em tudo isto há, no entanto, um aparente paradoxo relacionado com a irreversibilidade que referimos nas duas notas anteriores. De facto, as equações deterministas de Newton, por exemplo, são reversíveis no tempo, isto é, nada há nelas que proíba os movimentos em direção quer ao tempo futuro quer ao tempo passado. São, como se diz, invariantes ou simétricas em relação ao tempo. Então, porque afirma a termodinânica, na 2ª lei, o aumento inexorável da entropia e a consequente irreversibilidade do universo, o que, até agora, tem sido plenamente confirmado experimentalmente? Aliás, o termo "entropia" é muitas vezes identificado como a "seta do tempo", traduzindo bem o "movimento" universal num sentido único e a quebra de simetria temporal das equações deterministas subjacentes. A discussão deste problema, envolve questões tais como o "eterno retorno" e os modelos cosmológicos, que não abordaremos nesta breve nota. Contudo, do que vimos acima, não estará o caos determinístico na base desse aparente paradoxo?...
A ciência do caos atravessa todos os sectores do conhecimento, desde a física, química, meteorologia, biologia e medicina, até à sociologia, economia e história. Os respectivos modelos traduzem-se, uns mais do que outros, por equações matemáticas deterministas possivelmente sujeitas à dita sensibilidade às condições iniciais, ou seja, ao caos determinístico.
No que se refere à evolução histórica, é interessante ler David Ruelle [1], físico-matemático belga e especialista na ciência do caos: "As decisões que modelam a história, quando são tomadas racionalmente, fazem muitas vezes intervir um elemento aleatório, imprevisível. Isto não significa que o chefe do governo possa explicar ao público que tomou uma decisão importante jogando à cara ou coroa. Talvez seja isso precisamente o que ele fez ou talvez seja essa a maneira racional de agir. Mas deverá encontrar outra explicação para dar aos jornalistas, e provar-lhes que de facto não havia alternativa razoável à sua decisão. Os chefes políticos e militares de outrora tinham menos inibições, e introduziam um elemento aleatório nas suas decisões consultando os oráculos. É evidente que uma fé cega nos oráculos é muito estúpida e conduz bem facilmente a consequências desastrosas. Mas o uso hábil da imprevisibilidade oracular por um chefe inteligente pode ser uma boa maneira de realizar uma estratégia probabilista óptima".
Por último, mais três pensamentos para meditar:
"Você acredita num Deus que joga aos dados, eu na lei e ordem completas" (Albert Einstein, físico alemão, naturalizado americano).
"Acaso, é o pseudónimo de Deus quando Ele não quis assinar" (Anatole France, escritor francês).
"Na nossa luta para obter conhecimento há um resíduo irracional irredutível qualquer que seja o esforço. Na mecânica quântica, esse resíduo é tratado matematicamente de forma lúcida" (Niels Bohr, físico dinamarquês).

Referências

[1] David Ruelle,"O Acaso e o Caos", Relógio de Água, 1994.
[2] Ian Stewart,"Deus Joga aos Dados?", Gradiva, 2ª edição, 2000.