sábado, 4 de janeiro de 2014

Relativismo e Relatividade

Joseph Ratzinger, pouco antes de ser eleito Papa Bento XVI em 2005, disse que "estamos a caminhar em direção a uma ditadura do relativismo que não reconhece coisa alguma como definitiva e que tem como seu maior valor o ego e os desejos de cada um" [1].
O relativismo referido por Ratzinger advoga que todos os pontos de vista são igualmente válidos, não existindo valores morais ou outras referências (políticas, científicas, etc.) com verdadeira objetividade: uma experiência individual é tão válida como a de outrem, não há pontos preferenciais para julgar tanto o "belo" como  o "certo" e o "errado". O "eu" é a última medida. No caso particular da ciência, esta forma de "relativismo radical" está subjacente a movimentos anti-ciência que ressurgiram no século XIX, inspirados no secular romantismo e nas consequências sociais da revolução industriale, mais recentemente, em algumas expressões do pós-modernismo. No entanto, deve referir-se, também, o "relativismo cultural", não radical, que defende um profundo sentimento de respeito por outras culturas que não a nossa.
relativismo é, com frequência, compreendido como tendo semelhanças com a relatividade que Einstein desenvolveu na sua famosa teoria. Trata-se  de uma confusão que merece ser revisitada. 
O que a teoria da relatividade afirma é que as leis da física não dependem do referencial (sistema de coordenadas) que se escolha para a descrição dum dado fenómeno, isto é, a forma das leis é invariante. Um outro invariante da teoria é a velocidade da luz no vácuo (~300000 km/s). Contudo, a invariância das leis e da velocidade da luz implica que distâncias espaciais e intervalos de tempo não tenham os mesmos valores quando medidos em referenciais diferentes. Por exemplo, se dois relógios iguais forem sincronizados na Terra e um deles embarcar numa nave espacial a alta velocidade em relação à Terra, um observador em repouso na Terra concluirá que o tempo local medido no seu relógio "passa mais depressa" do que o do relógio espacial como ilustrado na animação [2], em que o relógio terreno é o azul. Isto é, o intervalo de tempo entre dois acontecimentos é maior na nave espacial do que na Terra (dilatação do tempo) [3].

( se a animação não for visível no seu browser ver referência [2] )

Por outro lado, o observador terreno concluirá que o comprimento duma régua embarcada na nave é menor do que o comprimento da sua régua local (contração do espaço) [3]. Isto é, a teoria estabelece que o espaço e o tempo não são conceitos absolutos. Simultaneamente, apresenta fórmulas exatas para determinar as diferenças das medidas temporais e espaciais. A dilatação temporal e a contração espacial só são percepcionadas a velocidades próximas da velocidade da luz, mas têm sido amplamente confirmadas experimentalmente nos aceleradores de partículas, por exemplo.
Segundo a teoria, nada disto é paradoxal, não implica qualquer forma de relativismo filosófico nem aspectos religiosos, artísticos e subjetivos. Observadores diferentes obtêm os mesmos resultados e comprovam as deduções da teoria, o que mostra uma das facetas cruciais da objectividade da ciência. Em suma, a relatividade de Einstein é tão-somente uma teoria científica, até agora comprovada experimentalmente, mas que, como é o timbre da ciência, pode ser refutada, complementada, ou mesmo erradicada, se novas descobertas ou resultados experimentais assim indicarem. É o caminho normal da ciência sem qualquer mistificação.
Refira-se que foi Max Planck e não Einstein a promover o nome "teoria da relatividade" [4]. Einstein teria preferido a designação "teoria dos invariantes", a qual talvez tivesse evitado as confusões com o relativismo e os muitos ensaios que Einstein recebeu para comentar, sem qualquer relação com a sua teoria. Um deles, "O Cubismo e a Teoria da Relatividade", escrito por um historiador de arte.
Por último, é interessante comparar duas afirmações de protagonistas da política e da ciência. Uma delas [4], quando em 1940 o presidente do senado de Danzigue, Hermann Rauschning, citou Hitler:
"Estamos no final da era da razão [...]. Um novo período de explicação mágica do mundo está a nascer, uma explicação baseada mais na vontade do que no conhecimento. Não há verdade, nem no sentido moral nem no sentido científico [...]. A ciência é um fenómeno social e, como tal, é delimitada pelos benefícios ou malefícios que possa causar. Com o slogan de ciência objectiva, o professorado apenas se queria libertar da indispensável supervisão do estado. Aquilo a que se chama crise da ciência não é mais do que esses senhores estarem a começar a ver por si mesmos o caminho errado a que foram conduzidos pela sua objectividade e pela sua autonomia".
A outra, consta da Declaração de Erice [5], em 1982, assinada pelo físico inglês Paul Dirac:
"A tecnologia pode ser para a paz ou para a guerra. A escolha entre paz e guerra não é uma escolha científica. É uma escolha cultural: a cultura do amor produz tecnologia pacífica. A cultura do ódio produz instrumentos de guerra. O amor e o ódio existiram sempre. Nas idades do Bronze e do Ferro, notoriamente pré-científicas, a espécie humana inventou ferramentas para a paz e instrumentos para a guerra. Na chamada "era moderna" é imperativo que a cultura do amor vença".
Hitler, mistura, de forma hedionda, relativismo, construtivismo social e anti-ciência. Paul Dirac, manifesta indelével humanismo.

Referências

[1] Citações de Joseph Ratzinger
[2] Dilatação do tempo ; Time Dilation (Wikipedia)
[3] Jorge Dias de Deus, "Viagens no Espaço-Tempo", Ciência Aberta, Gradiva, 1998.
[4] G. Holton, "A Cultura Científica e os seus Inimigos", Ciência Aberta, Gradiva, 1998.
[5] Declaração de Erice