quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

As Viagens de Gulliver. Laputa

As Viagens de Gulliver, da autoria do irlandês Jonathan Swift, 1726, têm sido adaptadas ao longo dos anos em variados contos onde pigmeus, gigantes e cavalos surgem no imaginário da nossa infância. A 3ª viagem de Gulliver, talvez a menos adaptada, foi à ilha Laputa, relevante na história da ciência porque o nome da ilha e a descrição da visita é uma sátira violenta sobre a ciência, em particular à Royal Society de Londres, fundada em 1660 pelo Rei Carlos II que desejou ser o patrono de uma instituição que representasse definitivamente a ascensão da ciência moderna.

Embora na Idade Média a actividade cultural não tivesse hibernado, foi a partir do Renascimento que o conhecimento nos vários domínios culturais teve avanços irreversíveis, estruturantes e globalizantes, em particular na ciência. Leonardo da Vinci (1452-1519), Nicolau Copérnico (1473-1543), Andreas Vesalius (1514-1564), Pedro Nunes (1502-1572), Thyco Brahe (1546-1601), Francis Bacon (1561-1626), Joahannes Kepler (1571-1630), William Harvey (1578-1657), René Descartes (1596-1650), Galileu Galilei (1564-1642), Robert Hooke (1627-1691) e Isaac Newton (1642-1727), ente muitos outros, contribuíram indelevelmente para o desenvolvimento da astronomia, navegação, matemática, física, biologia e medicina, culminando no Iluminismo (onde a emergência das ciências sociais é característica marcante) e apontando à Revolução Industrial e aos progressos impressionante do século XX. Entrou-se no que vulgarmente se designa por Era Moderna.

Factos políticos e sociais desses tempos são, por exemplo, a independência dos Estados Unidos da América (1776) e a Revolução Francesa (1789) com o famoso slogan "liberdade, igualdade e fraternidade". E, também, as hediondas decapitações da escritora francesa Olympe Grouges (1793), após ter publicado a "Declaração dos Direitos da Mulher", defendido Luís XVI e criticado Robespierre, e, do químico francês Antoine Lavoisier (1794), pai da química moderna, acusado (pelo despeitado médico Paul Marat) de fraude na humidificação das folhas de tabaco. Tudo isto, apesar do "princípio da inviolabilidade do indivíduo" na "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão" aprovada em 1789 pela Assembleia Nacional Francesa. De recordar, também, a escravatura, a pena de morte e a inquisição.

O método científico, a matemática entendida como linguagem da Natureza, o aparente determinismo dos fenómenos físicos com as suas leis e objectividade, a construção dos mais variados instrumentos, a implementação da química quantitativa, etc., afirmaram a ciência e a tecnologia como vectores culturais e civilizacionais para o progresso e bem-estar das sociedades.

Francis Bacon é considerado, pelo menos na cultura ocidental, como o mentor do método científico, destacando o papel crucial da experiência, do conhecimento racional e da capacidade humana para controlar a Natureza. Apesar da sua metodologia ser essencialmente indutiva, ainda não sublinhando a importância da hipótese e do raciocínio lógico-dedutivo, é indubitável que estimulou as descobertas e promoveu as aplicações práticas dos novos conhecimentos. Tanto mais servindo-se da sua influência social e política como procurador geral e lorde chanceler do Rei Jaime I de Inglaterra. Ironicamente, faleceu vítima de pneumonia após, numa noite de frio intenso, ter recheado um galináceo com neve para tentar demonstrar a importância da temperatura baixa na conservação da carne.
Em Avanço da Aprendizagem (1602), Bacon previu como a metodologia científica podia fornecer respostas, por exemplo, no prolongamento da vida e no desenvolvimento da agricultura. Em Novum Organum (1620), elegeu a imprensa, a pólvora e a bússola como as invenções que tinham transformado a literatura (recorde-se que Bacon foi contemporâneo de William Shakespeare), a guerra e a navegação. Nova Atlântida (1626) é uma obra de ficção, em que descreve a "Saloman's House" numa ilha utópica: um colégio de investigadores dedicados às descobertas e aplicações para o bem da comunidade, colectando e trocando informação através do mundo. "Conhecimento é poder", afirmou Bacon e, numa aparente invocação do deísmo, que "os homens devem saber que... somente Deus e os anjos são espectadores", estando aos homens reservada a aplicação activa do conhecimento.

Era de esperar que num mundo de "religiões reveladas", sensível a milagres, as ideias de Bacon fossem consideradas por muitos sectores como uma afronta às convicções religiosas e filosóficas dum Deus omnipotente. As reacções surgiram em catadupa e, eis que Gulliver descobre Laputa: uma ilha suspensa no espaço e habitada por estudiosos desafiando o senso comum. Embora fundamentada na lógica matemática, a academia desenvolve projectos tais como casas construídas do tecto para o chão, cores de tintas misturadas por cegos, produção de raios solares a partir de pepinos, e a transformação de gelo em pólvora e de excrementos em comida. Uma ilha de loucos motivados, afinal, pela bendita ciência! Mais, esses loucos possuem uma baixa moral, daí Jonathan Swift ter baptizado a ilha com o nome Laputa (a tradução espanhola e portuguesa do inglês "the whore"). De facto, o governo da ilha voadora pode suspender a seu prazer o sol e a chuva aos territórios subjacentes bem como arrasar qualquer povoação rebelde. Em suma, nas mãos desses imorais, mas  poderosos académicos, Laputa sugere a enorme ameaça que o método científico pode colocar!
Laputa pretendeu ser também, segundo alguns historiadores, uma crítica aos custos, praticabilidade e objectivos das explorações científicas da Royal Society de Londres. Curiosamente, diz-se que o seu patrono em 1660, o Rei Carlos II, estava impressionado com as tentativas dos investigadores em medir longitudes no mar, mas achava as discussões sobre o peso do ar cómicas e ridiculamente triviais. Enfim, o que dizer quando a autoridade cultural se mostra elusiva?...


Gulliver descobre a ilha voadora Laputa (ilustração de J. J. Grandville)

Referências
[1] Stanley W. Angrist, Loren G. Hepler, "Order and Chaos", Pelican Books, 1973.
[2] Sean F. Johnston, "History of Science", Oneworld Publications, Oxford, 2009.
[3] Raquel Gonçalves Maia, "O Legado de Prometeu. Uma Viagem na História das Ciências", Escolar Editora, 2006.