domingo, 9 de fevereiro de 2014

Belmiro de Azevedo. Competitividade e Educação

Belmiro de Azevedo, licenciado em engenharia químico-industrial pela Universidade do Porto, doutor honoris causa pelas Universidades do Porto e dos Açores, e prestigiado empresário, foi Assistente da Universidade do Porto, entre 1965 e 1968, onde leccionou as disciplinas de "projecto industrial" e de "química orgânica industrial". Recentemente, um Professor da Universidade de Coimbra, que foi aluno de Belmiro de Azevedo, disse-me que ele tinha sido um dos docentes mais apreciados pela afabilidade, competência e exigência.
Ao longo da vida de empresário, Belmiro de Azevedo tem manifestado sempre as suas preocupações sobre a educação e a investigação em Portugal com sugestões concretas. O que, infelizmente, não é frequente no meio empresarial português.
O artigo anexo foi publicado no jornal Expresso de 13/4/2002. Julgo que será interessante meditar sobre qual tem sido o desempenho do Estado (onde incluo as autarquias) e de todas as instituições privadas relativamente aos pontos focados, há 12 anos, por Belmiro de Azevedo. No final do artigo há uma frase lapidar: "Muitos investigadores nem sequer imaginam quão úteis são às empresas". Como nestas coisas a reciprocidade é fundamental, pergunto-me: imaginarão sequer muitos empresários quão úteis são os investigadores?

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Ciência e Anarquia

Michael Brooks, doutorado em física quântica pela universidade de Sussex do Reino Unido, é autor do livro "Free Radicals. The Secret Anarchy of Science" publicado em 2011. O título é metafórico, traduzindo uma visita à "torre de marfim dos cientistas", imagem que a ciência oficial ainda não conseguiu eliminar da sociedade em geral. Destacando a importância da ciência, o livro aborda a intuição, emoção, sonhos e crenças de cientistas, o sistema de revisão por pares ("peer review") bem como casos de testes aplicados por investigadores a eles próprios com alto risco de vida, erros de interpretação e julgamento, omissão de alguns resultados experimentais para justificar teorias, dependência de drogas, etc., que acabaram por conduzir a descobertas e realizações científicas relevantes, ou ao apaziguamento de conflitos entre visões diferentes da realidade. Afinal, os cientistas também são seres humanos! Um dos exemplos envolve o Papa Bento XVI.

Em 2008, na universidade La Sapienza de Roma, uma manifestação de alunos - consubstanciada por uma carta assinada por 67 cientistas da faculdade de física - cancelou a visita de Bento XVI programada para a abertura do ano lectivo. A razão invocada era que em 1990, ainda Cardeal Joseph Ratzinger, tinha feito um discurso onde afirmou que a decisão da igreja em condenar Galileu (por ter defendido que a terra se movia em torno do sol, i.e., o modelo heliocêntrico de Copérnico) tinha sido "racional e justa" e que "a igreja no tempo de Galileu era muito mais fiel à verdade do que o próprio Galileu". Tais palavras "ofendem e humilham-nos", declaravam os signatários da carta. Foi quebrada uma regra essencial, pois se os cientistas signatários tivessem lido o discurso de Ratzinger na íntegra teriam verificado que ele não atacava a ciência, mas, pelo contrário, a defendia. Afinal, o que Ratzinger deplorou foi os que alinhavam com a condenação de Galileu pela igreja medieval, dando como exemplo o filósofo da ciência Paul Feyerabend. Na verdade, foi este filósofo que, em 1975, no livro "Against Method", analisou o caso Galileu versus papa Urbano VIII e escreveu as palavras invocadas pelos signatários que, erradamente, as atribuíram a Ratzinger. No discurso, o cardeal considerou a análise de Feyerabend "drástica" porque o filósofo sabia muito bem que Galileu tinha tido razão. Além disso, a radicais que sugeriam que a igreja deveria ter penalizado Galileu ainda mais, respondia que "a fé não cresce do ressentimento e da rejeição da racionalidade".

O julgamento de Galileu, segundo muitos historiadores, resultou do despeito de alguns cientistas da época que estimularam o envolvimento de teólogos na análise do modelo heliocêntrico à luz dos ensinamentos da Bíblia. Como se sabe, durante o magistério de João Paulo II (que Ratzinger já integrava quando proferiu o referido discurso) Galileu foi "reabilitado" e "absolvido" pela igreja católica, após um longo processo que decorreu de 1979 a 1992.
Existe, no entanto, uma outra versão sugerindo que o motivo essencial da oposição da igreja medieval se deveu mais à crença de Galileu no "atomismo" (i.e., de que todas as substâncias materiais são constituídas por átomos específicos) do que à sua defesa do modelo heliocêntrico. Por exemplo, Euan Squires diz que embora as palavras de Jesus Cristo ao partir um pedaço de pão na última ceia ("este é o meu corpo") sejam, em geral, compreendidas como figurativas, não o eram para a maioria dos sectores católicos tradicionais que as entendiam como se o pão se tornasse realmente o corpo de Cristo. O atomismo, ao reduzir o pão a um conjunto de meros "átomos" de farinha tornava questionável a "transubstanciação" implícita na comunhão sagrada, ao contrário da versão da realidade de Aristóteles em que "substância" tinha um sentido mais abrangente e menos materialista. Em suma, os movimentos relativos do sol e da terra não estariam tão profundamente envolvidos na doutrina da igreja como os santos sacramentos.
Quanto a Paul Feyerabend (1924-94), a sua filosofia advoga o "anarquismo teórico" cuja ideia talvez possa ser captada pela seguinte passagem do livro "Against Method":

Será que a ciência como a conhecemos hoje, uma "busca pela verdade" no estilo da filosofia tradicional, criará um monstro? Não será possível que uma abordagem objetiva que desaprova contatos pessoais entre entidades irá prejudicar as pessoas, torná-las miseráveis, hostis, criando mecanismos moralistas desprovidos de charme e humor? "Não será possível" pergunta-se Kierkegaard "que minha atividade como um objetivo [ou crítico-racional] observador da natureza enfraqueça meu potencial como ser humano?" Eu suspeito de que a resposta para muitas dessas questões seja afirmativa e eu acredito que a reforma das ciências para torná-las mais anárquicas e mais subjetivas (em um sentido Kierkegaardiano) é urgentemente necessária.

Criticou, também, a geração de cientistas do pós - II guerra mundial:

The withdrawal of philosophy into a "professional" shell of its own has had disastrous consequences. The younger generation of physicists, the Feynmans, the Schwingers, etc., may be very bright; they may be more intelligent than their predecessors, than Bohr, Einstein, Schrödinger, Boltzmann, Mach and so on. But they are uncivilized savages, they lack in philosophical depth – and this is the fault of the very same idea of professionalism which you are now defending.

É claro que uma análise detalhada exige a leitura cuidadosa da obra de Feyerabend. Vários filósofos opinam que ele foi, essencialmente, um "provocador agreste" no sentido de se discutir e avaliar o que chama "episódios anárquicos" sob o manto da objectividade da ciência. Os quais, diga-se, o livro de Brooks não nega, mas analisa cientificamente. Contudo, as passagens anteriores suscitam de imediato  questões como:
Não desvirtuará esta doutrina a objectividade da ciência e os frutos benéficos que, indubitavelmente, tem produzido? Não estimulará manifestações de pós-modernismo e relativismo radicais, de anti-ciência e de pseudo-ciência? Não são os cientistas humanos? Não aprovam contactos pessoais e o charme? Não têm sentido de humor, frequentemente como "Farpas"? Não apreciam filosofia, poesia e outras expressões da arte, e "coboiadas"? Que reforma anárquica e subjectiva prescreve Feyerabend para as ciências? Mais alterações dos programas escolares e de "estratégias pedagógicas"? Não foi Feynman um cientista "sui generis" e um magistral pedagogo e divulgador da ciência?

O livro de Brooks é um lúcido, esclarecedor e científico contraponto para as "provocações" filosóficas de Feyerabend que foi ao extremo de afirmar que a bruxaria é um meio tão válido como a ciência para obter conhecimento e, também, que em ciência "vale tudo". Todavia, Brooks não é meigo para a ciência oficial (política científica?) dizendo que ela veste os investigadores com demasiados "coletes de força" que atravancam o caminho da boa ciência, e defendendo:

The work of science is too precious, and - in this age of approaching environmental crisis - too urgent, to allow that to happen. But safe in the knowledge that the public can cope with truly human scientists, and empowered by the realisation that people no longer fear science, we can set scientists free to work in the way that gives them their best chance of making progress.

Curiosamente, Michael Brooks liderou, nas eleições britânicas de 2010, o "Partido da Ciência", disputando o lugar do deputado conservador David Tredinnick, um simpatizante da anti-ciência e das medicinas alternativas que gastou 700 libras do erário público em software astrológico (após denúncia pública em 2009 teve de reembolsar o Estado). Brooks, perdeu a eleição: teve 197 votos contra os 23132 de Tredinnick. Isto, na secular democracia britânica. Deu-me para imaginar o que sucederia, em Portugal, numa situação semelhante...


Referências
[1] Michael Brooks, "Free Radicals. The Secret Anarchy of Science", Profile Books, 2011.
[3] Carlos Fiolhais, "Um Filósofo sem Razão", De Rerum Natura, 2007.
[4] Alan Sokal, Jean Bricmont, "Imposturas Intelectuais", Gradiva, 1999.
[5] Frederico di Trocchio, "O Génio Incompreendido", Dinalivro, 2002.
[6] Euan Squires, "Conscious Mind in the Physical World", Adam Hilger, 1990.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Ojectividade da Ciência versus Realidade Objectiva

"Objectos e fenómenos físicos são independentes de preconceitos e opções pessoais, devendo as observações e as previsões de teorias científicas ter um adequado suporte experimental e/ou lógico-matemático, e os resultados divulgados publicamente com vista à sua ampla confirmação ou refutação". Esta é a linha mestra do que entendemos por objectividade da ciência. Por sua vez, a ciência é um corpo de conhecimentos - obtidos por métodos e instrumentos específicos - fonte de aplicações tecnológicas e de formas de pensamento e de acção, desafiando permanentemente ideias estabelecidas. Como produto da actividade intelectual humana é, obviamente, uma das componentes da Cultura. Do exposto, depreende-se facilmente o que, em ciência, se compreende por subjectividade, a qual, em última instância, se requer erradicada de qualquer actividade científica. No entanto, nada disto é incompatível com a intuição e a emoção de cada um dos cientistas, factores psicológicos de crucial importância para o progresso científico. Destes, trataremos numa outra nota.
O conceito de objectividade da ciência é confundido frequentemente com o de realidade objectiva. No âmbito da ciência, esta questão radica-se essencialmente na mecânica quântica que foi desenvolvida a partir do início do século XX. Tentaremos mostrar que a objectividade da ciência não é quebrada mesmo que a realidade objectiva o possa ser num certo sentido.
Atire-se uma moeda ao ar. Caí de cara ou de coroa? É imprevisível, é um processo aleatório, ao acaso, diz-se, só saberemos o resultado após o evento. Todavia, a moeda segue uma trajectória determinista regulada pelas leis de Newton (ver a nota: "Acaso, Caos e Irreversibilidade. Jogo de Cara ou Coroa?"). Na ausência do conhecimento exacto das condições iniciais da moeda (posição, força de impulso, resistência do ar, etc.) recorre-se ao conceito de probabilidade: se a moeda não for viciada, a probabilidade de cair de cara ou de coroa é 1/2 (2 possibilidades para 1 observação). Mas... se tivéssemos o conhecimento exacto das condições iniciais da moeda saberíamos exacta e antecipadamente o resultado porque, como já referido, o movimento da moeda é regulado pelas equações deterministas de Newton. A observação do resultado seria, então, apenas a constatação do que já sabíamos a priori. Ou seja, a "propriedade" cara ou coroa (resultado final) fica desde logo exactamente determinada no inicio do lançamento. De qualquer modo, acreditamos que existe uma realidade que "flui lá fora" independente do observador, em que os atributos dos objectos estão sempre "impressos" neles, quer olhemos para eles ou não. É a esta realidade que a ciência chama realidade objectiva. De forma poética: "full many a flower is born unseen, and waste its sweetness on the desert air" [1]. Alguém duvida?
O facto de se atribuírem probabilidades é tão-somente um recurso operacional porque não sabemos exactamente as condições iniciais da moeda, de contrário, o valor da probabilidade não seria necessário para o eventual conhecedor dessas condições e das leis de Newton. Ganharia sempre ao ignorante!... São, afinal, probabilidades não-intrinsecas ao processo, as quais se designam probabilidades estatísticas.
Suponhamos, agora, que as dimensões macroscópicas da moeda se reduzem a dimensões microscópicas. Nesse caso, entra em cena a mecânica quântica que, na sua formulação ortodoxa, afirma: "não é possível, em qualquer circunstância, mesmo ideal, conhecer exactamente as condições iniciais da moeda, mas apenas as probabilidades dos resultados possíveis. Somente após uma observação, se pode conhecer, efectivamente, qual é o resultado". E quais são, afinal, as possibilidades? Aqui surge o inesperado, o aparentemente paradoxal para quem, como nós, vive num ambiente macroscópico. Ei-las: cara, coroa e, também, uma sobreposição coerente de cara e coroa (esta, análoga ao famoso gato de Schrodinger: morto e vivo simultaneamente até que uma observação decida o seu estado!). Mas não pode definir-se o estado inicial? Pode ser definido, mas numa formulação diferente do caso de situações macroscópicas (também chamadas clássicas): a sua forma matemática tem logo incluídas probabilidades intrínsecas, designadas probabilidades quânticas. Contudo, as equações quânticas que regulam a evolução temporal da "moeda quântica" são deterministas! Ou seja, conhecido o estado quântico inicial pode prever-se exactamente qual o estado em qualquer instante posterior, mas, sublinhe-se, são equações deterministas para a evolução temporal de probabilidades intrínsecas, não para as "propriedades físicas" cara ou coroa que apenas podem conhecer-se após uma observação. Em suma, o determinismo também está presente na mecânica quântica.
Não existem propriamente "moedas quânticas", mas são bem conhecidas outras entidades físicas, formalmente análogas à moeda imaginária, que apresentam comportamentos quânticos típicos. Por exemplo: o electrão que tem as propriedades spin up ou spin down, o fotão que pode apresentar polarização vertical ou polarização horizontal, etc. Para todos eles, as previsões da mecânica quântica são rigorosa e experimentalmente verificadas, inclusivé as referidas sobreposições coerentes, os tais "gatinhos de Schrodinger". Porque não se verificam, então, essas sobreposições coerentes (também chamadas interferências) no nosso ambiente macroscópico? Pois bem, a teoria da decoerência (uma especialidade da mecânica quântica) mostra que, na grande maioria dos sistemas macroscópicos, bastam as perturbações exteriores (inclusivé as provocadas pelas observações pessoais) para eliminar, quase instantaneamente, tais sobreposições ou interferências. Como consequência, as probabilidades quânticas surgem semelhantes às probabilidades estatísticas, manifestando-se como as quase-certezas da mecânica de Newton. A figura seguinte (adaptada da referência [2]) ilustra a ideia para a moeda macroscópica. Note-se que a descrição quântica inclui a possibilidade das sobreposições coerentes.


Finalmente, a questão tão apreciada, especialmente pelos filósofos: se o universo é essencialmente regulado por leis quânticas que nos indicam o papel indispensável do observador (um sujeito) para decidir qual é, efectivamente, o resultado de qualquer medição, conclui-se que estamos perante uma "realidade subjectiva", numa "crise de objectividade da ciência" porque, afinal, a realidade "é criada pelo observador", não existindo o "fluir lá fora" independente do observador. Tal conclusão, se interpretada "à letra", torna-se abusiva. De facto, se diferentes grupos de investigadores em diversas partes do mundo realizarem experiências em sistemas quânticos semelhantes, obterão precisamente os mesmos resultados. Logo, de acordo com a linha mestra referida acima, a objectividade da ciência não é, de modo algum, quebrada. Como corolário, embora não exista uma realidade objectiva no estrito sentido clássico, é indubitável que existe uma realidade empírica (não subjectiva, sublinhe-se) que "flui lá fora" de acordo com as equações quânticas deterministas.

Referências

[1] E. Squires, "The Mystery of the Quantum World", 2nd edition, Institute of Physics Publishing, Bristol, 1994.
[2] M. Tegmark, J.A. Wheeler, "100 Years of Quantum Mysteries", Scientific American, pags. 72-79, Februray, 2001.
[3] J. Baggott, "Beyond Measure. Modern Physics, Philosophy and the Meaning of Quantum Theory", Oxforfd University Press, 2004.
[4] L. Alcácer, "Introdução à Química Quântica Computacional", IST Press, Lisboa, 2007.
[5] F. Fernandes, "On decoherence theory", Centro de Ciências Moleculares e Materiais, 2012.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

100 Anos de Mistérios Quânticos

Este artigo de divulgação, da autoria de Tegmark e Wheeler, faz uma resenha histórica da teoria quântica e aborda questões como a interpretação de "muitos mundos" (com particular interesse para a cosmologia), a teoria da decoerência e a influência do cérebro-consciência nos fenómenos quânticos. 
Numa forma clara e apelativa, dá uma explicação dos mecanismos pelos quais o Universo, essencialmente regulado por leis quânticas, apresenta comportamentos clássicos na maioria das situações de nível macroscópico, e porque não se vislumbra, por exemplo, o famoso "gato de Schrodinger" (simultaneamente morto e vivo, até que uma observação decida o seu estado!). Por último, sugere algumas actualizações nos livros de texto de teoria quântica.
Embora escrito em 2001, o artigo permanece actual, sendo uma boa fonte para estudantes e todos os interessados nestes assuntos.



quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Foi Václav Havel Anti-Ciência?

Václav Havel (1936-2011), reputado estadista e dramaturgo checo, publicou alguns ensaios sobre ciência e tecnologia que merecem especial reflexão por serem controversos e pela considerável influência que tiveram, particularmente nos EUA, tanto mais vindos de uma personalidade da craveira de Havel. Diga-se, antes de mais, que Havel não era propriamente um leigo em ciência pois, na sua juventude, trabalhou como técnico de laboratório químico. Leia-se, então, um excerto do artigo publicado no "The New York Times", 1992, intitulado "O Fim da Era Moderna" [1]:
"[...] o fim do comunismo [...] trouxe um fim não só aos séculos XIX e XX, mas também à idade moderna como um todo. A era moderna tem sido dominada pela crença maior, expressa de diferentes formas, de que o mundo – e o Ser como tal – é um sistema completamente cognoscível governado por um número finito de leis universais que o homem pode aprender e orientar racionalmente para seu próprio bem. Esta era, que começou na Renascença e se desenvolveu do Iluminismo ao socialismo, do positivismo ao cientismo, da revolução industrial à revolução na informação, foi caracterizada por rápidos progressos no conhecimento racional, cognitivo. Isto, por sua vez, deu origem à orgulhosa crença de que o homem, situado no topo de tudo o que existe, era capaz de, objectivamente, descrever, explicar e controlar tudo o que existe, de possuir a única verdade sobre o mundo. Foi uma era em que reinou o culto da objectividade despersonalizada, uma era em que se amontoou e explorou tecnologicamente o conhecimento objectivo, uma era de sistemas, instituições, mecanismos e médias estatísticas. Foi uma era de livre circulação de informação não existencialmente justificada. Foi uma era de ideologias, doutrinas e interpretações da realidade, uma era em que o objectivo foi encontrar uma teoria universal do mundo e, assim, uma chave universal para lhe abrir as portas da prosperidade. O comunismo foi o extremo perverso desta tendência […]. A queda do comunismo pode ser encarada como um sinal de que o pensamento moderno – baseado na premissa de que o mundo é objectivamente cognoscível e de que o conhecimento assim obtido pode ser absolutamente generalizado – chegou à crise final. Esta era criou a primeira civilização tecnológica global, ou planetária, mas atingiu o limite das suas potencialidades, o ponto para além do qual o abismo começa. [...] A ciência tradicional, com a sua costumada frieza, pode descrever as diferentes vias passíveis de levar à nossa autodestruição, mas não nos pode oferecer instruções verdadeiramente efectivas e praticáveis para nos afastar dessas vias".
Havel caracteriza, de certo modo, a era moderna, embora com afirmações, a nosso ver, injustificadas. De facto, a maioria da comunidade científica não tem a crença de que o mundo e os seres sejam completamente cognoscíveis e governado por um número finito de leis universais, nem advoga o “cientismo” (o que Havel parece sugerir). Recorde-se que “cientismo” (ou cienticismo) é a perspectiva de que a ciência é o melhor modo de pensamento e actividade para conduzir à verdade e felicidade supremas. Por outro lado, tanto o comunismo como o capitalismo são fundamentados numa visão mecânica do mundo (ou paradigma newtoniano), essencialmente materialista, contribuindo ambos (apesar dos seus diferentes modelos económico e sociais e acções políticas) para a actual civilização tecnológica, como referimos numa nota anterior ("Crise Energética, Leis da Termodinâmica e a 3ª Revolução Industrial"). Relativamente à conexão entre o comunismo e a ciência moderna, sugerindo Havel o fim desta com a queda do comunismo, é interessante referir algumas palavras do americano Loren R. Graham, especialista em história e filosofia da ciência soviética [2]:
"Terá sido a formação dada ao maior batalhão de engenheiros que o mundo jamais viu – gente que viria a dominar toda a burocracia soviética – em moldes tais que esses engenheiros não sabiam praticamente nada da economia e política modernas, um triunfo da ciência? E mesmo muito depois da morte de Stalin, já nos anos 80, o que era a insistência soviética em manter unidades agrícolas estatais ineficientes e gigantescas fábricas estatais se não uma expressão do dogmatismo obstinado que se esfumou em face de uma montanha de dados empíricos?".
E sobre a "base científica" da decisão de Mao Tse-Tung, "o Grande Timoneiro Chinês", no que respeita à matança dos pássaros por comerem os cereais? Por outro lado, o que dizer de algumas formas de capitalismo, também com fundamento científico, que nos assaltam em nome de concepções ambíguas, como "o mercado" e "as agências de rating", que vão hipotecando o futuro das gerações futuras? Será um triunfo da ciência?
Por último, surge uma aparente confusão entre ciência e tecnologia e, também, com o significado de objectividade da ciência. A ciência, em si mesma, não é maniqueísta, mas apenas uma componente da Cultura, um dos meios de adquirir conhecimento, ajustando os seus modelos e teorias de acordo com a lógica de raciocínio e a experimentação, e obedecendo ao seu critério-guia de objectividade. E, sublinhe-se, aliando sempre ao racional a intuição e a emoção. Ao contrário de algumas tecnologias e indústrias (filhas directas da ciência, certamente) que podem ser fortemente dependentes de políticas e respectivos pressupostos ideológicos, e ter consequências nefastas para a humanidade. Mas, afinal, não nos oferecem (ver uma nota anterior "Entropia e Probabilidade") a ciência e algumas tecnologias actuais "instruções verdadeiramente efectivas e praticáveis para nos afastar dessas vias" da auto-destruição clamada por Havel? Parece-nos que sim, e cada vez mais, à medida que a crise entrópico-energética se agrava. Podem designar-se essas contribuições como representantes duma "ciência pós-moderna"? Se sim, quais são os métodos, modelos, teorias e interpretações científicas que a distinguem da chamada "ciência moderna"?
A ciência moderna foi também abordada por Havel noutro ensaio de 1984, "Politics and Conscience" [3], do qual se seleciona o excerto seguinte:
"[...] é uma época que nega a importância irrecusável da experiência pessoal – incluindo a experiência do mistério e do absoluto – e substitui o absoluto vivenciado pessoalmente como medida do mundo por um absoluto, forjado pelo homem, despido de mistério, livre dos «caprichos» da subjectividade e, como tal, impessoal e desumano. É o absoluto da chamada objectividade: a cognição objectiva e racional do modelo científico do mundo. A ciência moderna, ao construir a sua imagem universalmente válida do mundo rompe as barreiras do mundo natural, do qual só pode ter a imagem de uma prisão feita de preconceitos da qual devemos sair para ter acesso à luz da verdade objectivamente verificada […]. Deste modo, é claro, procede à abolição, como mera ficção, até do mais íntimo fundamento do nosso mundo natural. Mata Deus e ocupa o seu lugar no trono deixado vazio, de modo que, daí em diante, seria a ciência a deter a ordem dos seres nas suas mãos como a sua única legítima guardiã, tal como seria o único árbitro legítimo de todas as verdades relevantes. Pois, no fim de contas, apenas a ciência se eleva acima de todas as verdades subjectivas individuais e as substitui por uma verdade superior, transubjectiva e transpessoal, que é verdadeiramente objectiva e universal. O racionalismo moderno e a ciência moderna, através do trabalho do homem, que, como qualquer trabalho humano se desenvolve no interior do nosso mundo natural, põe-o agora sistematicamente de parte, nega-o, degrada-o e difama-o – e, claro, ao mesmo tempo coloniza-o".
Em resumo, parece que ciência moderna contém, desde o início, os germes fatais da sua própria ruína, sendo até "acusada" de deicídio. Quanto a este, é por certo uma metáfora de dramaturgo, mas...se lida "à letra"!… Curiosamente, a metáfora tem raízes seculares. Quando Pierre de Laplace (1749-1827), físico, matemático e astrónomo francês, apresentou a sua magistral obra "Mécanique Céleste", Napoleão disse-lhe: "Senhor Laplace, dizem-me que escreveu este longo livro acerca do sistema do universo e nem sequer mencionou o seu Criador", ao que Laplace respondeu: "Não tive necessidade dessa hipótese"No entanto, pouco antes de falecer, Laplace disse: "O que sabemos é insignificante; o que não sabemos é imenso".
Os ensaios de Havel sobre ciência e tecnologia tiveram reacções, por vezes agrestes, e algumas consequências, em particular nos EUA. Uma das consequências é relatada e documentada pelo físico americano, e historiador da ciência, Gerald Holton [4]. Resumidamente, George E. Brown Jr. foi presidente do Comité do Congresso dos EUA para a Ciência, Espaço e Tecnologia, e um dos mais resolutos e eficazes advogados da ciência até que, em 1992, leu o referido ensaio de Havel “O Fim da Era Moderna”. Inspirado por ele, começou por escrever um longo artigo introspectivo sob o título "A Crise da Objectividade" no American Journal of Physics. Concluiu que a sua resposta, à questão de saber se a ciência pode partilhar um lugar no centro da cultura moderna, era claramente um não. Quando Brown apresentou as suas ideias a um grupo de especialistas em ciências sociais, durante o encontro anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência, apenas um discordou abertamente. Outro dos especialistas, sugeriu que para apreciar propostas de financiamento à investigação científica, o governo federal deveria criar uma variante da Fundação Nacional para a Ciência, entre cujos membros se deveriam incluir não-especialistas tais como um "sem abrigo" e um elemento dum "gang urbano". Contudo, em 1994, Brown distanciou-se destes caminhos, porventura sensibilizado por alguns cientistas, num artigo da revista Physics Today, intitulado "New Ways of Looking at U.S. Science and Technology". Mas, o novo Congresso, eleito em 1994, reduziu substancialmente o apoio que a ciência recebera desde a 2ª guerra mundial, e um dos influentes congressistas da nova maioria advogou que os fundos para a recolha de dados científicos deviam ser eliminados, porque esse tipo de informação levava, frequentemente, o Congresso a adoptar regulamentos, como os que visam a protecção do ambiente ou dos locais de trabalho, que podiam colidir com alguns interesses.
Alguns autores, por exemplo Holton [4],  classificam o pensamento de Václav Havel, sobre ciência e tecnologia, como representante do romantismo ou do pós-modernismo ou da anti-ciência, ou duma simbiose de todos esses movimentos. Quanto a nós, Havel foi, afinal, um intelectual ("não é intelectual quem quer, mas quem é" [5]...) que fez incursões nessas vertentes culturais. Compreende-se o seu antagonismo em relação ao comunismo e a sua vincada preocupação sobre o que julgamos ser, mais propriamente, alguma tecnologia-indústria do que sobre a ciência em si mesma, embora discordemos de muitas das suas afirmações. Não o consideramos, no entanto, um arauto da anti-ciência, pois quem leia atentamente os seus ensaios concluirá que foi um humanista com profundas, e fundamentadas, preocupações ecológicas que acabou por defender a ciência! Uma passagem retirada do seu ensaio "Politics and Conscience", não incluída no excerto anterior, é ilustrativa:
"A modern man, whose natural work has been properly conquered by science and technology, objects to the smoke from the smokestack only if the stench penetrates his apartment. In no case, though, does he take offence at it metaphysically, since he knows that the factory to which the smokestack belongs manufactures things that he needs. As a man of the technological era, he can conceive of a remedy only within the limits of technology – say, a catalytic scrubber fitted to the chimney. Lest you misunderstand: I am not proposing that humans abolish smokestacks or prohibit science or generally return to the Middle Ages. Besides, it is not by accident that some of the most profound discoveries of modern science render the myth of objectivity surprisingly problematic and, via a remarkable detour, return us to the human subject and his world. I wish no more than to consider, in a most generally and admittedly schematic outline, the spiritual framework of modern civilization and the source of its present crisis […]. The fault is not one of science as such but of the arrogance of man in the age of science. Man simply is not God, and playing God has cruel consequences".
Será que Havel não devia ter-se "atrevido" a discorrer sobre ciência uma vez que não era um cientista? Parece-nos que uma resposta adequada é citar o físico Erwin Schrödinger, um dos pais da mecânica quântica, quando se "atreveu" a opinar, em 1944, sobre a vida e a genética (áreas fora da sua especialidade) no célebre clássico "What is Life?" [6]:
"...we are only now beginning to acquire reliable material for welding together the sum total of all that is known into a whole; but, on the other hand, it has become next to impossible for a single mind fully to command more than a small specialised part of it. I can see no escape from this dilemma than that some of us should venture to embark on a synthesis of facts and theories, albeit with second-hand and incomplete knowledge of some of them – and at the risk of making fools of ourselves”.
Pois bem, Francis Crick, um dos premiados Nobel da Fisiologia e Medicina em 1962, pela descoberta da estrutura do ADN, admitiu ter sido "strongly influenced by (although not in complete agreement with) the broad-ranging ideas put forward here by this highly original and profoundly thoughtful scientist".
O pensamento de Havel teve consequências e discordâncias que devem ser meditadas, transmitidas e discutidas, mas lendo na íntegra os seus ensaios. Não apenas retirando alguns excertos com o intuito de justificar atitudes radicais de anti-ciência e de pós-modernismo, ou para classificar Havel como um dos seus defensores. Tal parece ter sido o caso, entre outros, de George Brown. Quanto ao influente congressista de 1994, ficou certamente incomodado com as preocupações ecológicas de Havel...

Referências

[1] Václav Havel, "The End of Modern Era", 1992.
[2]  L.R. Graham, "The Gost of the Executed Engineer: Technology and the Fall of the Soviet Union", Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1993.
[3] Václav Havel,  "Politics and Conscience", 1984.
[4] G. Holton, “A Cultura Científica e os seus Inimigos”, Gradiva, 1998.
[5] Romeu de Melo, "Os Intelectuais e a Política", Editorial Presença, 1964.
[6] E. Schrödinger, "What is Life", Cambridge University Press, 1992.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Acaso, Caos e Irreversibilidade. Jogo de cara ou coroa?

Henri Poincaré (1854-1916), matemático, físico e filósofo francês, escreveu em "A Ciência e Método": "Uma causa muito pequena, de que não nos apercebemos, determina um efeito considerável que nós não podemos deixar de ver, e então dizemos que esse efeito é devido ao acaso", citado em [1].
Esta afirmação capta bem a nossa sensação do "aleatório", da "imprevisibilidade", do "azar nos jogos", em suma, do "acaso" que parece perspassar a evolução temporal dos sistemas. Não tendo certezas, atribuímos probabilidades às nossas expectativas, tentando satisfazer o irresistível desejo de prever o futuro ou de ganhar a lotaria.
Mas tudo será aleatório, ao acaso? Não ensinou Newton, com as suas equações matemáticas, a prever, com espetacular precisão, o movimento dos astros, os eclipses e o aparecimento de cometas? Não desceu o homem na Lua orientado pela mecânica de Newton?
Examine-se a figura seguinte. Os círculos representam bolas numa mesa de bilhar e as linhas com setas as trajectórias, ao longo do tempo, de duas bolas adicionais. Repare-se nas trajectórias muito próximas, quase indistinguíveis, no canto inferior esquerdo. Representam as trajectórias iniciais das ditas bolas adicionais que vão colidir com as que já estão na mesa. Sigam-se essas trajectórias. É óbvio que, ao fim dum certo número de colisões, os caminhos das duas bolas nada têm a ver um com o outro. Contudo, se soubermos exactamente as condições iniciais das duas bolas, as equações deterministas de Newton prevêem exactamente cada uma das trajectórias.


E se aquelas trajectórias, quase indistinguíveis, representarem a incerteza do nosso conhecimento sobre a condição inicial duma única bola? Nesse caso, a despeito do movimento da bola ser exatamente determinado pelas equações de Newton, não saberemos qual será a sua trajectória, é imprevisível! Eis o que se entende por caos determinístico (ou simplesmente, "caos") : sistemas dinâmicos que apresentam comportamentos aparentemente aleatórios, produzidos por um mecanismo essencialmente determinista e consequentes de condições iniciais que difiram por pequeníssimos valores. Nos fenómenos caóticos, a ordem determinista cria a desordem do acaso, via o que se designa sensibilidade às condições iniciais (traduzida na metáfora "efeito borboleta": o bater de asas de uma borboleta talvez possa provocar um ciclone no outro lado do mundo).
Nem todos os sistemas apresentam comportamento caótico: o sistema sol-planetas-cometas, por exemplo, tem geralmente um comportamento bem previsível a longo prazo. O mesmo não se passa no âmbito da meteorologia: uma previsão do clima apenas é segura, em geral, dentro de uma a duas semanas, embora o mecanismo climático seja regulado por equações deterministas. E nos sistemas atómico-moleculares o caos está sempre presente, a despeito dos movimentos das moléculas serem regulados, também, pelas equações deterministas de Newton e da mecânica quântica. 
Em tudo isto há, no entanto, um aparente paradoxo relacionado com a irreversibilidade que referimos nas duas notas anteriores. De facto, as equações deterministas de Newton, por exemplo, são reversíveis no tempo, isto é, nada há nelas que proíba os movimentos em direção quer ao tempo futuro quer ao tempo passado. São, como se diz, invariantes ou simétricas em relação ao tempo. Então, porque afirma a termodinânica, na 2ª lei, o aumento inexorável da entropia e a consequente irreversibilidade do universo, o que, até agora, tem sido plenamente confirmado experimentalmente? Aliás, o termo "entropia" é muitas vezes identificado como a "seta do tempo", traduzindo bem o "movimento" universal num sentido único e a quebra de simetria temporal das equações deterministas subjacentes. A discussão deste problema, envolve questões tais como o "eterno retorno" e os modelos cosmológicos, que não abordaremos nesta breve nota. Contudo, do que vimos acima, não estará o caos determinístico na base desse aparente paradoxo?...
A ciência do caos atravessa todos os sectores do conhecimento, desde a física, química, meteorologia, biologia e medicina, até à sociologia, economia e história. Os respectivos modelos traduzem-se, uns mais do que outros, por equações matemáticas deterministas possivelmente sujeitas à dita sensibilidade às condições iniciais, ou seja, ao caos determinístico.
No que se refere à evolução histórica, é interessante ler David Ruelle [1], físico-matemático belga e especialista na ciência do caos: "As decisões que modelam a história, quando são tomadas racionalmente, fazem muitas vezes intervir um elemento aleatório, imprevisível. Isto não significa que o chefe do governo possa explicar ao público que tomou uma decisão importante jogando à cara ou coroa. Talvez seja isso precisamente o que ele fez ou talvez seja essa a maneira racional de agir. Mas deverá encontrar outra explicação para dar aos jornalistas, e provar-lhes que de facto não havia alternativa razoável à sua decisão. Os chefes políticos e militares de outrora tinham menos inibições, e introduziam um elemento aleatório nas suas decisões consultando os oráculos. É evidente que uma fé cega nos oráculos é muito estúpida e conduz bem facilmente a consequências desastrosas. Mas o uso hábil da imprevisibilidade oracular por um chefe inteligente pode ser uma boa maneira de realizar uma estratégia probabilista óptima".
Por último, mais três pensamentos para meditar:
"Você acredita num Deus que joga aos dados, eu na lei e ordem completas" (Albert Einstein, físico alemão, naturalizado americano).
"Acaso, é o pseudónimo de Deus quando Ele não quis assinar" (Anatole France, escritor francês).
"Na nossa luta para obter conhecimento há um resíduo irracional irredutível qualquer que seja o esforço. Na mecânica quântica, esse resíduo é tratado matematicamente de forma lúcida" (Niels Bohr, físico dinamarquês).

Referências

[1] David Ruelle,"O Acaso e o Caos", Relógio de Água, 1994.
[2] Ian Stewart,"Deus Joga aos Dados?", Gradiva, 2ª edição, 2000.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Relativismo e Relatividade

Joseph Ratzinger, pouco antes de ser eleito Papa Bento XVI em 2005, disse que "estamos a caminhar em direção a uma ditadura do relativismo que não reconhece coisa alguma como definitiva e que tem como seu maior valor o ego e os desejos de cada um" [1].
O relativismo referido por Ratzinger advoga que todos os pontos de vista são igualmente válidos, não existindo valores morais ou outras referências (políticas, científicas, etc.) com verdadeira objetividade: uma experiência individual é tão válida como a de outrem, não há pontos preferenciais para julgar tanto o "belo" como  o "certo" e o "errado". O "eu" é a última medida. No caso particular da ciência, esta forma de "relativismo radical" está subjacente a movimentos anti-ciência que ressurgiram no século XIX, inspirados no secular romantismo e nas consequências sociais da revolução industriale, mais recentemente, em algumas expressões do pós-modernismo. No entanto, deve referir-se, também, o "relativismo cultural", não radical, que defende um profundo sentimento de respeito por outras culturas que não a nossa.
relativismo é, com frequência, compreendido como tendo semelhanças com a relatividade que Einstein desenvolveu na sua famosa teoria. Trata-se  de uma confusão que merece ser revisitada. 
O que a teoria da relatividade afirma é que as leis da física não dependem do referencial (sistema de coordenadas) que se escolha para a descrição dum dado fenómeno, isto é, a forma das leis é invariante. Um outro invariante da teoria é a velocidade da luz no vácuo (~300000 km/s). Contudo, a invariância das leis e da velocidade da luz implica que distâncias espaciais e intervalos de tempo não tenham os mesmos valores quando medidos em referenciais diferentes. Por exemplo, se dois relógios iguais forem sincronizados na Terra e um deles embarcar numa nave espacial a alta velocidade em relação à Terra, um observador em repouso na Terra concluirá que o tempo local medido no seu relógio "passa mais depressa" do que o do relógio espacial como ilustrado na animação [2], em que o relógio terreno é o azul. Isto é, o intervalo de tempo entre dois acontecimentos é maior na nave espacial do que na Terra (dilatação do tempo) [3].

( se a animação não for visível no seu browser ver referência [2] )

Por outro lado, o observador terreno concluirá que o comprimento duma régua embarcada na nave é menor do que o comprimento da sua régua local (contração do espaço) [3]. Isto é, a teoria estabelece que o espaço e o tempo não são conceitos absolutos. Simultaneamente, apresenta fórmulas exatas para determinar as diferenças das medidas temporais e espaciais. A dilatação temporal e a contração espacial só são percepcionadas a velocidades próximas da velocidade da luz, mas têm sido amplamente confirmadas experimentalmente nos aceleradores de partículas, por exemplo.
Segundo a teoria, nada disto é paradoxal, não implica qualquer forma de relativismo filosófico nem aspectos religiosos, artísticos e subjetivos. Observadores diferentes obtêm os mesmos resultados e comprovam as deduções da teoria, o que mostra uma das facetas cruciais da objectividade da ciência. Em suma, a relatividade de Einstein é tão-somente uma teoria científica, até agora comprovada experimentalmente, mas que, como é o timbre da ciência, pode ser refutada, complementada, ou mesmo erradicada, se novas descobertas ou resultados experimentais assim indicarem. É o caminho normal da ciência sem qualquer mistificação.
Refira-se que foi Max Planck e não Einstein a promover o nome "teoria da relatividade" [4]. Einstein teria preferido a designação "teoria dos invariantes", a qual talvez tivesse evitado as confusões com o relativismo e os muitos ensaios que Einstein recebeu para comentar, sem qualquer relação com a sua teoria. Um deles, "O Cubismo e a Teoria da Relatividade", escrito por um historiador de arte.
Por último, é interessante comparar duas afirmações de protagonistas da política e da ciência. Uma delas [4], quando em 1940 o presidente do senado de Danzigue, Hermann Rauschning, citou Hitler:
"Estamos no final da era da razão [...]. Um novo período de explicação mágica do mundo está a nascer, uma explicação baseada mais na vontade do que no conhecimento. Não há verdade, nem no sentido moral nem no sentido científico [...]. A ciência é um fenómeno social e, como tal, é delimitada pelos benefícios ou malefícios que possa causar. Com o slogan de ciência objectiva, o professorado apenas se queria libertar da indispensável supervisão do estado. Aquilo a que se chama crise da ciência não é mais do que esses senhores estarem a começar a ver por si mesmos o caminho errado a que foram conduzidos pela sua objectividade e pela sua autonomia".
A outra, consta da Declaração de Erice [5], em 1982, assinada pelo físico inglês Paul Dirac:
"A tecnologia pode ser para a paz ou para a guerra. A escolha entre paz e guerra não é uma escolha científica. É uma escolha cultural: a cultura do amor produz tecnologia pacífica. A cultura do ódio produz instrumentos de guerra. O amor e o ódio existiram sempre. Nas idades do Bronze e do Ferro, notoriamente pré-científicas, a espécie humana inventou ferramentas para a paz e instrumentos para a guerra. Na chamada "era moderna" é imperativo que a cultura do amor vença".
Hitler, mistura, de forma hedionda, relativismo, construtivismo social e anti-ciência. Paul Dirac, manifesta indelével humanismo.

Referências

[1] Citações de Joseph Ratzinger
[2] Dilatação do tempo ; Time Dilation (Wikipedia)
[3] Jorge Dias de Deus, "Viagens no Espaço-Tempo", Ciência Aberta, Gradiva, 1998.
[4] G. Holton, "A Cultura Científica e os seus Inimigos", Ciência Aberta, Gradiva, 1998.
[5] Declaração de Erice